Fico sempre comovida quando, em noite de Bolinhos e Bolinhós, num Outono já a desmaiar para o Inverno, recebemos figos secos como oferenda “para dar aos finados, que estão mortos e enterrados, à porta da vera cruz…”. Numa noite em que, alumiados pelas abóboras feitas candeias, pedimos por e para quem já partiu num apelo de proteção recíproca, são as crianças que se deliciam com os figos secos. As crianças… e os adultos que as acompanham. Gula, gula, gula… ou talvez não. Talvez reminiscências de um tempo antigo em que o figo seco era alimento pronto, seguro e disponível em alturas de fome, que o mesmo era dizer, em tempo de carestia de cereal com que se fazia o pão sagrado e o pão do quotidiano.
Era o figo seco companhia fiel da aguardente no mata-bicho que mais do que matar o bicho matava a fome logo pela manhã. Fora da primeira refeição da manhã, o figo seco adoçava a boca e servia de guloseima pela concentração de açúcares (glucose, frutose e sacarose) que se atingia com a secagem.
Não há nada que me saiba melhor do que receber uns figos secos na noite dos bolinhos e bolinhos. Frescos são fruta de pouca duração e por isso comidos com sofreguidão, secos são manjar e aconchego delicioso em noite fria. Nestas alturas fico sempre a pensar em como gostava de ser algarvia e ter à minha beira figos secos deliciosos e suculentos.
Gostava de viver naquele pedaço de terra, no dizer de Orlando Ribeiro, banhado pelo sol debaixo de um céu luminoso onde a menor humidade e maior temperatura fazem os figos mais doces. Daí a fama, daí o proveito.
Fama que, por terras algarvias, fez com que fosse este um dos produtos que mais dinamizava o movimento de exportação nos portos locais. A prática de secar os figos ao sol foi por isso apurada levando a que junto a cada casa existisse um almeixar (só a palavra leva-nos para o imaginário quente e exótico mourisco), ou seja, espaço soalheiro delimitado por um muro onde se espalhavam estes frutos em cimas de esteiras de funcho ou de canas delgadas para aí receberem o sol durante 4 a 6 dias. Se apertados entre os dedos os figos não rachassem era sinal de que estão prontos para serem recolhidos, de outro modo, deviam ficar mais algum tempo a secar.
Mas se estes já são uma riqueza, que dizer das Estrelas de Figos e dos Figos Cheios de Olhão? Mimos do aprimoramento culinário, as primeiras são feitas com figos secos abertos em forma de estrela e decorados com amêndoas nas pontas. Por cima, coloca-se outro figo aberto e fica uma deliciosa Estrela de Figo. Os segundos são figos secos recheados com amêndoa, açúcar, chocolate, canela e erva-doce. Depois de feitos são embrulhados em papel branco franjado a imitar uma réstea de alhos. Estes últimos bem calóricos, são sobretudo o resultado de uma imaginação profícua e de uma arte regalada já que a forma como se apresentam embrulhados é de uma criatividade ainda mais deliciosa que o seu sabor.
Fama e proveito. Contam as crónicas da ousada conquista do mar a história de Jorge Pires de Almada, marinheiro devoto mas muito mais amante de figos do Algarve. Dizem que já com os mastros partidos e com as velas rotas, este marinheiro certo da desgraça em vez de rezar pela alma agarrado a um crucifixo, optou por se deliciar com uma talega de figos que foi saboreando calmamente até ao último exemplar. Conta-se que ia dizendo: “morra Marta, morra farta!”. É por estas e por outras que gosto de ter em mim um bocadinho deste Portugal tão delicioso.