Opinião: Brasil: “ame-o ou deixe-o”?

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Durante a ditadura militar que governou o Brasil entre 1964 e 1985, a propaganda do regime criou uma frase criminosa: «Brasil: ame-o ou deixe-o». Expressava ela que apenas existia um Brasil «bom», o «oficial», o da ditadura, o dos militares, o do povo ordeiro e obediente – percetível na cançoneta nacionalista «Eu te amo, meu Brasil», composta em 1970 –, e que o outro, o da oposição que lhe resistia, o que se opunha à censura e à tortura, aquele que desejava uma vida melhor, direitos para todos e democracia, era «mau», melhor sendo que se calasse ou emigrasse de vez.

Face à polarização política extrema que vive hoje a sociedade brasileira, é inevitável que essa desgraçada frase da ditadura regresse ao pensamento de quem conheceu aqueles negros anos. Tem vindo de novo a emergir uma tendência, nos setores ultranacionalistas e em parte significativa da opinião pública, para diabolizar todos aqueles que não pensam em conformidade com o candidato da ultradireita. De paupérrimo e nulo programa, sem propostas positivas, mas ultrademagógico e ameaçador, como se o futuro do Brasil pudesse ser determinado pela ameaça real do dedo no gatilho.

Esta clivagem afeta até setores em regra considerados moderados, num processo que tende a extremar as escolhas, partindo dramaticamente o país em dois. As causas desta situação são numerosas e complexas, em parte radicadas na experiência recente. Adianto dez, porventura as mais evidentes e profundas.

As duas primeiras são mais habitualmente referidas: o peso e o caráter endémico da corrupção, socialmente transversal e que afeta todo o sistema político, e também a vivência do medo, imposto pelos brutais índices de violência e criminalidade estimulados pela desigualdade social. Depois, em terceiro, o caráter periférico da democracia brasileira, com um historial curto e acidentado, em boa medida determinado pela posição geoestratégica e pela dependência dos Estados Unidos da América. De seguida, em quarto, o caráter reduzido da classe média, fonte de moderação onde tem maior peso e que aqui é minoritária. A ela associada, uma débil formação de muitos quadros com lugares de responsabilidade: ao lado de um ensino universitário e médio de excelência, geralmente público, existe um outro, privado, que forma milhões sem qualidade ou critério. O ódio ao conhecimento e à cultura constitui, aliás, um dos traços do candidato direitista.

Em quinto lugar, inclui-se a decomposição ideológica do sistema político brasileiro, com escassa tradição da fidelidade a convicções e programas, associada a um grande peso das redes clientelares. Em sexto, a fragilidade dos sindicatos e até de movimentos sociais, em boa parte associada às transformações verificadas nos anos de governo do PT. Já em sétimo lugar pode destacar-se um conservadorismo cultural extremo, em boa parte alimentado por seitas religiosas de grande impacto social que convivem mal com a evolução tolerante das mentes e dos costumes. E em oitavo, a exacerbação do nacionalismo, comum, aliás, à generalidade da América Latina, que facilmente entronca no autoritarismo e no militarismo.

Duas outras causas, associadas a problemas recentes, merecem ainda destaque, pois são decisivas para compreender a situação presente e a enorme possibilidade de o candidato da ultradireita vencer as eleições. Em nono lugar, pois, o controlo dos media e das redes sociais, com uma proliferação brutalmente intensificada e inquietante da mentira em forma de verdade (as «fake news»), da manipulação tendenciosa da informação e até do silenciamento puro e simples de toda a informação julgada inconveniente. E por fim, em décimo, a eclosão mundial de um novo padrão de populismo – de direita ou «de esquerda», como ocorre no caso venezuelano – que degrada o debate político e tende a colocar no poder quem recorre a um palavrório ajustado aos medos e a alguns anseios legítimos.

Neste panorama desolador, a segunda volta das eleições para a presidência do Brasil pode trazer algo de novo. Será difícil, uma vez que se agigantam as sombras de um autoritarismo plebiscitado, mas não impossível. Porém, aconteça o que acontecer, o futuro de um país imenso, com tanto potencial, com tanta gente trabalhadora, honesta, jovial e generosa – os malfeitores, oportunistas e parasitas serão sempre a minoria – apenas poderá ser a democracia. Para que não volte a ser necessário optar, no Brasil, entre amá-lo imperfeito, largá-lo nas garras dos abutres ou resgatá-lo nas ruas.

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