Apanhámos o nascer do sol a meio da viagem. Tinha-me deitado tarde, como nas outras noites de alfabetizar homens e mulheres na escola em férias de Malpica do Tejo, no final do Verão de 1976. Juntámo-nos no largo da aldeia à espera da camioneta que nos levaria a Lisboa, à FIL, para uma coisa nunca vista, diziam os velhos, mais por fé do que por conhecimento.
Às dez horas o sol já ia alto e iluminava as dezenas de bandeiras coloridas que bordejavam a avenida paralela ao Tejo. A letras gordas lia-se Festa do Avante, pela primeira de muitas vezes, cidade depois obrigada a andar de morada em morada, como os nómadas escorraçados, até encontrarem a sua Atalaia.
Aquela Festa era um país à parte, Portugal na mesma mas coletivo. O recinto abarrotava de gente que se deslocava em massa pelos corredores estreitos entre os pavilhões. Portugal numa geografia reinventada, os Açores na mesma rua de Trás-os-Montes do lado de lá do Alentejo, o aroma do queijo de S. Jorge a namorar a Posta Mirandesa à vista de um olival de Ficalho. Segui pelas ruas entre a multidão, de mapa na mão, ao encontro de uma Coimbra fora de si. O tempo viria a criar um dialeto para aquele lugar: “ir a Coimbra” significa, em festa-do-avantês, encontrar aqueles que foram dali – por nascimento ou passagem – e dali ficaram para sempre, presos a laços que precisam dos reencontros que (naturalmente) já não cabem na Coimbra do Mondego. Mas recuperam-se na Festa, naquela Coimbra simbólica no que respeita a muros (todos de tubo e contraplacado) mas real nos seus habitantes de algum dia. Nem as voltas da vida, e dissidências que nela ocorrem, foram capazes de baralhar os caminhos que ali vão dar – Coimbra a permanecer ponto de encontro de (também) militâncias que são as da amizade e da partilha da vontade de justiça no mundo.
A Festa era um país à parte, Portugal na mesma mas concentrado na melhor música, no teatro, na literatura, no debate, tudo ao contrário da alienação produzida pela comunicação de massas que transforma as mentiras mais primárias em inquestionáveis verdades. Portugal era Archie Sheep, Lopes-Graça e Luigi Nono, Manuel da Fonseca, Bernardo Santareno, José Gomes Ferreira, Rogério Ribeiro. E era os construtores da Festa: eletricistas, carpinteiros, soldadores, pintores de paredes, arquitetos, engenheiros, e professores-eletricistas, médicos-carpinteiros, bancários-soldadores, estudantes-pintores de paredes, as profissões todas baralhadas numa eficiência coletiva de criação de uma cidade que tinha tudo, e gente feliz.
Este ano lá estivemos outra vez, as varandas de Coimbra viradas para o Tejo. Nos painéis da cidade de tubo e contraplacado pintou-se a Floresta, sua memória e propostas de construção de um país produtivo, quando for vencido o tempo da propaganda e da usura. Uma Floresta para os dias em que o povo decidir que o território merece ser plantado de verde, de bichos e de gente.
Da pequena FIL chegámos à enorme Atalaia, a multidão indiferente às “notícias” de maldizer (este ano era a novidade manhosa era a do prejuízo que a Festa dá), envolvida no convívio, na Arte, na patuscada, nos espetáculos, na muita política de refletir – e agir! – sobre um mundo que precisa de paz e de pão. É a Festa, data marcada no calendário de Portugal, o mundo todo em três dias de futuro.
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