“Em tempo de melão, encurta o sermão”. Ouvi há dias numa homilia lá para cima, algures pelo Norte. Se a referida preleção tinha sido interessante, todos acabamos com uma gargalhada. Não sei bem se por ter terminado a cerimónia religiosa se pela perspetiva de irmos deliciar-nos com um belo almoço que com a “barriga a dar horas” nem paciência há para o mais santo dos sermões. De qualquer forma, bem razão tinha o pároco, tempo de melão é tempo de calor, ora porque carga de água havemos de estar a falar se podemos estar a comer? E logo numa altura em que há tanta farturazinha na cozinha…
Tal chamou-me a atenção para a bênção que recebemos todos os Verões no que a frutas diz respeito. Desde o prenúncio até ao ocaso da época estival enchem-se as casas de cheiros frescos, tentadores e sumarentos com as cerejas, os pêssegos, as ameixas, os melões, as melancias, as ameixas, as amoras (que num esforço contínuo roubamos à gula dos pássaros), os figos e as romãs, esses maravilhosos e simbólicos frutos que dão as boas vindas ao Outono. “Até lhes chamamos um figo!” tal o prazer.
Se são boas as frutas de Verão a verdade é que não duram para sempre e, rapidamente, atingem uma maturação que traz desgosto em vez de gosto. A inexorabilidade do tempo também nas frutas obrigou à conservação. Neste capítulo quero falar da uvada, uma receita bem tradicional de conservação do pero Bravo Esmolfe em locais onde a tradição vinícola é acentuada como é o caso de Arruda dos Vinhos e Alenquer. Acentuo que referi pero e não maçã como nós para cima do Mondego estamos habituados a ouvir falar. Na verdade, a botânica indica-nos várias variedades de maçã Bravo Esmolfe e o que é curioso é que se no Norte todas são apelidadas de maçãs, já no Oeste e na região de Lisboa faz-se a distinção entre peros e maçãs. A uvada é feita com uma variedade que, naquela região, é chamada de peros Bravo Esmolfe, de paladar e formato diferentes das designadas de maçãs. Para além deste regionalismo na designação da fruta, a uvada destaca-se porque é feita com arrobe, ou seja, com mosto de uva concentrado que serve de substituto do açúcar. A sabedoria popular leva os locais a escolher para este arrobe o mosto de uva com maior grau que, depois de fervido, recebe os ditos peros. Depois, com muita paciência, há que mexer até adquirir uma consistência como a marmelada.
Um registo etnográfico alimentar bem peculiar de um povo que, provavelmente, não tinha açúcar em abundância e que no mosto proveniente da intensa atividade vinícola encontrou um excelente e singular substituto do açúcar tão útil na conservação da fruta. Dizem alguns registos locais que, para além dos referidos peros, também se utilizavam uns outros chamados “Focinho de Coelho” e ainda, peras, abóbora menina e outras frutas. Aliás, o arrobe servia, ainda, para adoçar outras receitas como as papas de milho.
Sabor doce a quebrar um quotidiano frugal e de trabalho, a uvada era símbolo de doçaria em mesa de Natal. Estes são registos maravilhosos de um povo que sempre se conseguiu exceder a si próprio na superação das dificuldades e que, para adoçar a vida, nunca se esquivou a uma surpreendente criatividade. Façam favor de “ter mais olhos que barriga”, a uvada vale a barrigada! Brindemos à uvada, do mosto para o vinho ao arrobe para a uvada!