Não que a humanidade tenha estado a viver um daqueles tédios insuportáveis que só um rasgo de criativa anormalidade possa resgatar do vazio da história a nossa apagada existência. Mas a chegada do Facebook e de outras redes sociais instalou-se, seduzindo-nos para uma vida alternativa, incandescente e omnipresente, iludindo-nos quanto a uma oportuna libertação do Homem ante as garras da ignorância, criando-nos a fantasia de nos encontramos connosco próprios ao interagirmos com milhões de outros perfis de “amigos”, levando-nos a partilhar estados de alma filtrados por algoritmos e sintetizados por emojis.A condição humana tem vindo a ser condicionada pelo primado das tecnologias da informação e comunicação. Se, por um lado, como salienta o “The Onlife Manifesto”, estas tecnologias possibilitam uma participação e expressão democrática direta, permitindo que os cidadãos possam intervir, opinar e deliberar mais sobre o que lhes diz respeito, por outro lado passámos a viver num mundo virtual, feito de perceções e de ilusões da realidade.Contudo, se a modernidade tem trazido vantagens à sociedade com os avanços científicos que têm sido implementados, ainda assim não está isenta de desvantagens. Basta olharmos para a forma como o Facebook entrou na nossa vida e como a condiciona. De tal forma que a Entertainment Weekly, revista semanal norte-americana publicada pela Time Inc., ironizou: “Como vivíamos antes de cuscarmos anonimamente outras pessoas, ou como nos lembrávamos dos aniversários dos nossos amigos antes do Facebook?”
Uma das questões que a ética reiteradamente vem discutindo prende-se com o esbatimento do conceito de público e privado, relacionando essa perigosa ambiguidade com o uso das redes sociais. Ao aceitarmos que tudo está acessível, abrimos as portas ao delírio de que já não há entraves à intimidade nem abrigo face ao olhar do público, escancarando a existência e legitimando a ditadura da exposição, tendo como falsa desculpa a necessidade de transparência das sociedades e a prestação de contas a que todos estão obrigados. Puro populismo… Essa visão, de certa forma, tolhe-nos a racionalidade e cega-nos face a valores que deviam proteger a liberdade dos indivíduos e o respeito que lhes é devido.
Acredito que a liberdade não ocorre num vácuo, mas estende-se com elasticidade num espaço de aberturas e restrições que deve ser temperado. Acredito que a liberdade deve ser tão defendida hoje quanto foi reclamada há dois séculos. E foi precisamente há duzentos anos que Mary Shelley criou a personagem do cientista Victor Frankenstein. Obcecado pela utilização da ciência para gerar vida, o médico Frankenstein engendrou um ser grotesco, cuja crueldade não conseguiu mais dominar. Neste conto de ficção, Frankenstein percebeu que a criatura monstruosa que criou havia escapado ao seu controlo. Ironicamente, como está hoje a acontecer com as redes sociais, a criatura absorveu o criador.
Mark Zuckerberg não tem conseguido demonstrar ser capaz de resolver o emaranhado de dúvidas que pairam sobre a sua mega-criação, o Facebook. Nem consegue convencer ninguém de que os dados pessoais dos seus utilizadores, a sua privacidade e a sua liberdade de decisão estão a salvo. Ainda que não aperte o gatilho, o Facebook tem sido a arma à disposição de quem a queira usar. Nada consegue fazer para o travar. E já nem sequer pode dizer que a culpa é do monstro, porque isso já não é suficiente. Nem Frankenstein acredita.
One Comment