Negastes o Santo e o Justo
e pedistes a libertação dum assassino; matastes o autor da vida,
mas Deus ressuscitou-O dos mortos, e nós somos testemunhas disso. Agora, irmãos, eu sei que agistes por ignorância,
como também os vossos chefes.
Act 3, 14-17
É curioso que todos se benzem. Católicos ou islâmicos, hindus ou judeus. Todos ritualizam a compenetração e a prostração perante Deus, intercedendo para que os seus objetivos se concretizem, pedindo proteção ou simplesmente para que Deus os acompanhe no que vier e no que a vida lhes reservar. E benzem-se os artistas antes de um espetáculo e os jogadores de futebol antes de entrarem em campo e os pugilistas antes de cada combate e deixarem o adversário inconsciente com um só golpe (“meu Deus, se possível, seria espetacular! Concede-me a graça de concretizar um uppercut de esquerda que faça saltar os dentes do meu adversário!”) e os toureiros antes de entrarem na arena (“por favor, meu Deus, inspira-me para que saia em apoteose depois de uma lide sangrenta e bela!”) e os soldados e os políticos e os ditadores… Todos pedem a Deus o seu auxílio, a sua proteção, a sua inspiração, a sua glória.
… estranha forma de sentir Deus e de relacionamento com Deus… e, no entanto, todas legítimas… ou não?!…
Tenhamos presente a premissa filosófica “Deus É”: que está presente em tudo o que existe, em todas as coisas, visíveis e invisíveis, e que todos os seres humanos, no seu mais profundo íntimo, reconhecem e identificam Deus. De forma mais ou menos clara, todos os seres humanos possuem noção e consciência dos conceitos de “BEM”, de “BOM” e de “BELO”, de “Correto” e “Incorreto”, que são Deus em si mesmos. Conceitos que estão muito para lá da Lei (o que é legal pode não ser correto), da Moral (que é temporal e mutável, uma vez ser reflexo de movimentos sociais, culturais e económicos), mas que estão sempre em consonância com a Ética (intransponível, imutável, atemporal, perene): com a razão e a racionalidade, com essa consciência holística (de tudo o que existe, do Eu e do Outro, da Natureza, da Vida), contraposta com os interesses primários, os vícios e as paixões… É muito difícil viver com Deus. É muito exigente… E se os dois pugilistas que se vão confrontar se benzerem e intercederem por um KO? E um toureiro que vai desfazer as costas de um touro com ferros como se fosse (para ele e para quem assiste) um bailado? E um caçador, para matar o maior dos javalis (mesmo que tenha crias e não seja por uma questão de sobrevivência)… E quando se manda bombardear um país para “instaurar a paz e o bem”, para “combater as armas químicas” (e por isso, há que as rebentar!)… “God bless America” mesmo que em seu nome se cometam injustiças ou crimes. “Tem que ser!” Ou haverá um Deus secular e um outro Deus sagrado? Um para as questões da Terra e da Humanidade e outro para o romantismo da espiritualidade e da Vida no mundo que há-de vir…
São as incongruências de sentir e vivenciar Deus. Não por culpa de Deus!… Que tal fique claro, porque não quero ser injusto.
“Que Deus nos ajude a ter uma vida melhor!” (mesmo que seja à custa da exploração de mão de obra infantil ou da produção intensiva de carne, de leite, de cereais; mesmo que seja à custa da exploração dos ecossistemas e do aumento da poluição).
Do cidadão anónimo aos decisores todo-poderosos, visíveis e invisíveis, que estão em toda a parte, em nome de Deus.
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