Tantas vezes repetido, com carinho recebido, o gesto múltiplo das nossas mães nunca se esquece. Podíamos fechar os olhos e fazer de cor as receitas tantas vezes repetidas por aquelas mãos inquietas e sempre atentas. Talvez por isso os cadernos onde guardamos as receitas das nossas mães cheirem a cozinha quente e a imensos sabores que, antes de mais, temos no coração.
Talvez por isso as receitas não digam tudo, apenas remetam para o “qb”, para “a gosto”, para a “pitada”, para o “pedaço”. Talvez por isso tenhamos aprendido a fazer as misturas de ingredientes não com quantidades precisas, bem pesadas, mas ao ritmo do que a massa pede. Para quê dizer tudo quando o sabor nunca foi anónimo, nunca foi órfão? O gosto que começa no colo e no peito da mãe e que se guarda religiosamente nos almoços de família onde o sabor da família é o fio condutor de uma viagem, não de um tempo solitário perdido num dia qualquer, mas de uma vida cheia de abraços, despedidas e, sempre, regressos.
O sabor que nos guia pela vida “como a avó fazia”, “como a tia fazia”, “como a mãe nos ensinou” dá-nos a certeza de que a receita é mais do que uma partilha de uma técnica culinária. É o sabor que todos reconhecem e que faz com que, por muitas voltas que a vida dê, todos voltem ao regaço da família, ao sabor que os une. É a galinha no forno a cheirar a almoço de domingo. É o arroz doce a cheirar a festa. É o folar a cheirar a Páscoa. São as freiras acabadinhas de estoirar na sertã a cheirar a gargalhadas em tarde de férias de Natal.
O sabor não nasce connosco, mas aprendemo-lo com quem gosta de nós. Saboreamos pelas suas mãos o sabor de quem nos quer bem e só assim percebemos que não interessa se a receita é rica ou pobre, interessa que nos foi dada com o amor de quem nos quer mais do que a própria vida. Enganem-se os que acham que nas casas pobres o sabor era amargo e que nas casas ricas seria doce. Era doce qualquer que fosse o berço. Era de ouro no sabor, porque de ouro era o sentimento de quem nutria muito mais do que corpo. De outra maneira porque recordaríamos com saudade os sabores mais simples? Porque temos saudades do café de panela que acompanhava o pão com carapaus de escabeche? Não eram mãos delicadas, sedosas de dedos finos e bem cuidados aquelas que nos traziam o prato ainda a fumegar, mas sim mãos rugosas, ásperas, de dedos grossos. Eram as mãos de quem à roda do chocalhar dos tachos e das panelas sempre arranjava uma refeição.
Que desespero! Tentar e não conseguir reproduzir a receita que já a avó fazia! Queremos fazer boa figura e à força de tanta vontade não deixamos a massa repousar o tempo suficiente, ou então, erramos na escala dos ingredientes. Seguros da nossa certeza esquecemo-nos que bastaria fechar os olhos e deixar que a recordação do cheiro, do sabor, nos guiasse na receita. Bastaria seguir com a nossa imaginação o ritmo das mãos, a firmeza dos gestos, a segurança da arte culinária. Afinal, haveria lá outra maneira de fazer aquela receita senão aquela que aprendemos com as nossas mães? Havia sim, mas não seria o sabor que conhecemos e que, antes de tudo, nos dá aconchego. Descobrimos que, afinal, o sabor não é apenas um dos sentidos. É sentimento. É bom, é quente, é doce. O sorriso, a lágrima, a ternura são condimento para o sabor.
Tantas vezes repetido, com carinho recebido, o gesto das nossas mães sobrevive em nós, sempre, todos os dias, desde o primeiro choro até à última recordação dos sabores e dos cheiros da cozinha da mãe. E é quando descobrimos que o sorriso é o que acompanha a lembrança que percebemos a presença feliz do sabor do abraço e do colo das nossas mães. Ontem, hoje e sempre nas nossas vidas.