Opinião – À Mesa com Portugal

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Olga Cavaleiro

Habituámo-nos depressa demais a simplificarmos as refeições. Dizemos carne, dizemos peixe, sem saber muito bem o conteúdo de tais conceitos, aliás, parece até que hoje uma refeição é apenas constituída pelo tal peixe ou carne, arroz ou batata e alguns vegetais para compor o prato e nos descansar a consciência de que estamos a fazer uma “refeição saudável”.

No meio de tudo isto, esquecemos tanta coisa sobre a carne e o peixe, sobretudo, a primeira pois a forma como ela surge na banca do hipermercado devidamente cortada e embalada, por vezes, já transformada para uma refeição rápida leva-nos a esquecer que a carne deriva de um animal.

Tal não nos deveria incomodar mais do que o necessário, ou seja, sem nos levar a comportamentos extremos. No entanto, dada a veleidade com que muitas vezes a carne é tratada passando de alimento fundamental e desperdício alimentar dá-nos a certeza de que importa olhar esta correspondência sempre necessária da “carne” com o animal que lhe deu origem. Talvez se percebermos tal tenhamos mais respeito pela carne que nos é posta no prato e que deveremos consumir.

Num país que é um hino à biodiversidade e que se orgulha de ter 44 raças autóctones entre os caprinos, ovinos, bovinos, galináceos e suínos é quase um pecado falar de indistintamente de carne. Diretamente relacionadas com a geografia e com os cruzamentos feitos pelo homem de forma a conseguir um animal adequado às necessidades de trabalho, de alimentação e de vestuário, estes animais apresentam diferentes características físicas.

Assim, podemos ser surpreendidos por animais mais corpulentos, mais dóceis, mais exóticos, com armaduras maiores ou mais pequenas, com diferentes tipos de pelagem, de cores muito diferentes, enfim, animais que decerto nos surpreendem dado o nosso desconhecimento no que respeita a raças autóctones.

É sublime olhar para um macho da Raça Barrosã e admirar a sua armadura em forma de lira que chega a atingir 2 metros de altura. É impossível não sentir a ternura do olhar de uma fêmea da Raça Arouquesa e perceber que a sua compleição física é adaptada ao difícil relevo da geografia de Arouca e dos concelhos limítrofes pertencentes ao solar daquela raça. Sentimos a bravura e a agressividade destemida de um Touro Bravo quando o vimos na lezíria ribatejana.

Vimos a nobreza e a beleza da Raça Mertolenga quando olhamos um macho que chega a atingir 900kg e que tem uma cor malhada e que atinge várias gradações de castanho, todas lindas. Que dizer da raça Marinhoa aqui tão próxima de nós, com a doçura do olhar das fêmeas? Fascinante observar o porte altivo de um macho ou de uma fêmea da Raça Maronesa onde na pelagem de cor escura se encontra a marrafa de pelos curtos de cor ruiva.

De forma semelhante, uma viagem pelas raças autóctones de ovinos leva-nos à descoberta de animais tão diferentes quanto diferente é a geografia que os separa. A Raça Churra Algarvia faz-nos descobrir um interessante animal cujos olhos são circundados por umas manchas negras e a cornadura nos machos se desenrola em espiral numa beleza ímpar. Poderemos dizer que num exemplar da Raça Churra da Terra Quente a cornadura é ainda mais sumptuosa e a lá cobre-lhe o corpo de forma caída.

Já na Raça Campaniça a lã é algo mais do que o que cobre o corpo do animal, ele é o próprio corpo de tão compacta que é. Diferentes geografias, diferentes cruzamentos, diferentes utilizações, diferentes raças sem dúvida.
Nos caprinos ficamos fascinados com os cornos espetados do macho da Raça Bravia que domina a paisagem mais agreste de Trás-os-Montes e do Minho. As listas que contrastam com o branco da face de uma cabra da Raça Serpentina diz-nos que na natureza a beleza não é um acaso fortuito, ela é uma certeza. Ficamos sem palavras com o aspeto garboso de um caprino da Raça Algarvia. Para além da cor da pele malhada, os cornos levemente em espiral projetam-se no ar.

Impossível olhar os ovinos, os caprinos ou os bovinos da mesma maneira após esta curta viagem por algumas raças autóctones portuguesas. Importa perceber que se hoje dizemos vaca, ovelha ou cabra de forma indistinta e de forma generalista é somente porque desconhecemos a riqueza de carácter e de apresentação destes animais. Também só o fazemos porque nos desligámos das nossas origens.

Desligámos do tempo em que o animal não era só um auxiliar no trabalho, era o animal que nos dava alimento (desde a carne, o leite, o queijo, a manteiga) e a lã ou a pele, mas era, sobretudo, parte do nosso quotidiano. Era parte da família, era vínculo entre a vizinhança, era parte da paisagem que nos enchia os olhos todas as manhãs e na qual encerrávamos o nosso dia. Fazia parte dos rituais religiosos para favorecer a abundância. Era parte do divertimento tão característico da pausa. Era animal cujo sacrifício impunha o ritual, a festa, o agradecimento pelo alimento.

Era bom que a monotonia alimentar no que respeita à “carne” fosse substituída pela diversidade que podemos e devemos conhecer. Era bom que, sem saudosismos absurdos e irracionais, nos lembrássemos do vínculo que antes tínhamos com os animais. Era bom que aprendêssemos a ver o todo para além da parte e sentíssemos a gratidão necessária pela dádiva de tantas raças que são nossas e que vão muito além do nosso Portugal gastronómico, são parte da nossa geografia, cultura e história. Sem dúvida, são também a nossa identidade.

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