A tradição dos pães doces em Portugal deveria fascinar-nos, pois facilmente percebemos que num país dominado durante séculos pela necessidade da fuga à fome era o pão doce a maneira dos mais pobres festejarem a quebra na rotina do trabalho, era senhor no momento de festa em que a comunidade parava o trabalho, esquecia as preocupações e vivia o excesso também na mesa.
Era de tal forma que, em muitas das festividades como as dedicadas ao padroeiro, era ele próprio símbolo de dádiva à divindade e, imbuído de significados extremos, penhor de tranquilidade e fertilidade agrícola.
Pegando no pão, alimento de todos os dias e base da alimentação, as comunidades faziam o pão doce enriquecendo-o com os ovos, antes o mel e depois o açúcar, o leite, a manteiga, o azeite e outros condimentos. Por isso, temos tantas tradições portuguesas onde o pão doce adquire protagonismo na mesa da festa.
Seja em forma circular, trança, oval, meia-lua, ferradura. Seja de azeite, seja de manteiga. Todos têm o condão de, mal tocam no nosso palato, nos remeter para memórias antigas que parecem que as recebemos geneticamente. Parece que tocam o nosso interior e amaciam a nossa fome, dão-nos a sensação de saciedade, não por acalmarem a necessidade física de alimento, mas por nos lembrarem momentos bons na comunidade e na família.
No entanto, no conjunto dos pães doces portugueses são os folares que apresentam maior protagonismo, não só pelo simbolismo associado a uma das maiores festas cristãs, mas também pela riqueza e diversidade, quer de ingredientes utilizados, quer pelos formatos. Talvez porque o folar antes de estar associado à Páscoa fazia já parte dos rituais pré-cristãos é que se afirma com tanta pujança no quotidiano da festividade pascal e tem ainda para nós, num tempo em que a religião perdeu força pelos significados que procura impor, uma importância tão grande.
Na verdade, nas sociedade antigas, após a despedida do Inverno com o Equinócio da Primavera entrava-se no tempo da renovação, no tempo de preparar as terras para um novo ciclo agrícola, de sacrificar o melhor na esperança de receber mais, de a semente morrer para nascer de novo e trazer abundância às casas. Por isso, os pães doces eram alimento em abundância tendo em vista a fertilidade de um novo ciclo agrícola. Por isso, os pães doces eram alimento de partilha e vínculo na coesão da comunidade.
Partilhava-se o melhor que se tinha, usando as melhores reservas em sinal de agradecimento, para que o futuro não soubesse a fome, mas a mesa fosse sempre farta. Por isso, faziam-se os cortejos do pão, dádiva aos deuses pelo bem maior que se queria, a ausência da fome. Por isso, os pães eram muitas vezes em forma de meia-lua, remetendo para a fertilidade sempre associada à mãe Lua.
Com a cristianização dos rituais do Equinócio da Primavera em que, à renovação primaveril em que a semente morre para renascer fazendo uma alusão à morte e ressurreição de Cristo, muitas das tradições alimentares mantiveram-se. O folar é uma das mais fortes a par do sacrifício do animal jovem como o cabrito ou o cordeiro (em muitos locais dito de anho). Por isso, é o folar encimado com ovos remetendo-nos estes para a fertilidade pois, para além de alimento, é vida que eles transportam no seu interior. Seja em que formato for, os ovos não deixam de fazer parte do folar.
Até os interessantes e distintivos formatos que predominam no distrito de Portalegre como o lagarto e a boneca os incluem. Talvez por isso seja possível perceber que padrinho que se preze oferece um exemplar com muitos ovos. O tempo é de acreditar de que o futuro vai ser de abundância no celeiro.
Mas se a cultura, ou seja, os homens fazem a gastronomia, também a geografia tem aqui o seu protagonismo. E na verdade, é delicioso perceber a diversidade de folares que temos pelo país. Se em Trás-os-Montes nos deixamos deliciar pelos folares com carnes a remeter para a importância que o ciclo do porco e consequente fumeiro tem pelo Nordeste de Portugal, já os pães doces ditos folares da Beira Alta apresentam como ingrediente proeminente, o azeite, o que lhes confere um sabor acentuado.
Por seu lado, a Beira Litoral tem o seu folar doce onde, para além da farinha de trigo, dos ovos e do açúcar, o leite e manteiga dão-lhe a leveza que os caracteriza. Descendo para o sul do país, encontramos os lindos folares de Castelo de Vide e Portalegre onde em forma de lagarto ou boneca os folares são oferecidos aos afilhados. No extremo sul de Portugal somos surpreendidos pelo folar algarvio onde entre as camadas da massa do folar é adicionado aguardente de medronho, açúcar amarelo e canela.
Seja em que formato for, a verdade é que somos reféns do sabor tranquilo e doce do folar que nos acompanha numa viagem pelos cheiros da Primavera como as glicínias que têm o condão de se abrir ao mundo quando festejamos a Páscoa. De tal forma, que as luzes que brilham na noite escura da Procissão dos Passos do Senhor ou o tinir do sino do compasso sabem sempre aquele folar doce que nos enche o coração e nos faz comer sem saber porquê, sabendo sempre mais e melhor quando partilhado à mesa com a família que se reúne ou com os amigos que nos visitam em casa trazendo até nós a amizade de sempre.
Páscoa é folar, talvez porque antes precisávamos de tal partilha com a comunidade e com a divindade para sentirmos o conforto de um futuro próspero e pródigo. É assim o folar, antes penhor de gratidão com a natureza, com a divindade, hoje alimento para o físico e para alma.