Opinião – Devo, logo existo

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Joaquim Amândio Santos

Joaquim Amândio Santos

23300 euros.

Contas redondas e a confiar nos números oficiais, este é o valor que cada um dos dez milhões de portugueses deve a esses entes misteriosos, chamados credores. E não, não falo do carro, da casa, das férias, da torradeira elétrica ou dos cortinados comprados lá para casa, muito menos do dinheiro gasto num casório, comunhão solene ou “festório” afim. Falo da dívida pública portuguesa.

Esse baluarte engordado paulatinamente ao longo das últimas quatro décadas e que define todo o regabofe que temos vivido, em prol de um progresso acelerado e de uma modernidade que pede meças aos países mais ricos e mais avançados.

A dívida pública portuguesa atingiu os 233.039 milhões de euros em Março, o equivalente a 128,9% do Produto Interno Bruto (PIB).

Basicamente, o que isto nos diz, numa alegoria rebuscada e assaz irónica, é que teríamos de trabalhar 467 dias seguidos, sem comer, sem beber, sem gastar um soldo que fosse em qualquer necessidade básica ou prazer lânguido, venerando até à exaustão o mais radical dos princípios estoicos.

Fosse cada um e todos os portugueses capazes de tal demanda e colocávamos as contas a zero!
Ou não.

Também segundo os mesmos números oficiais, a conta, em Dezembro de 2015, estava “apenas” em 231.342 milhões de euros, o que significa que houve um aumento de 1.697 milhões de euros nos primeiros três meses do ano, o que significa que este país vê o seu “calote” aumentar uns meigos 565 milhões de euros por mês! Por mais que a verdade doa e realmente é intensamente dolorosa, a situação atual de endividamento do país diz bem da alucinação anestesiante em que se transformou a nossa sociedade.

Por um lado, demonstra claramente que muitas das conquistas da sociedade atual e que nos fazem viver muito mais e muito melhor, qualquer que seja a comparação feita com épocas passadas, foram construídas numa falsa convicção de que o progresso e o crescente aumento exponencial de produção iria dotar a sociedade dos recursos financeiros necessários para oferecer aos seus cidadãos acesso a todo este maravilhoso novo mundo tecnológico, onde o conforto e a capacidade são quase ilimitados.

Por outro, releva praticamente em todas as nações (e Portugal é disso exemplo grave e pleno!) a crescente podridão que se instalou nas elites dirigentes, com sucessivas gerações de líderes políticos e económicos a esbanjarem o bem público em obras faraónicas, negócios ruinosos para o tesouro público, sendo protagonistas cada vez menos disfarçados de um golpe claro no sentido de escravizar o Estado, a sociedade e todos quantos não têm capacidade de influência, transformando-os em meros peões da mexicanização da economia, colocando poder e riqueza na mão de uns poucos e sujeitando a maioria à escravidão do consumo e do endividamento para a vida!

No caso português, todos nós deveremos orar e agradecer a nossa situação de quase indigência.

Afinal, se assim não fosse, como seriam possíveis:
Tantas autoestradas em que passa um carro de vez em quando, mas a renda da concessionária está sempre assegurada.
Inúmeras piscinas, pavilhões, rotundas e outras obras faraónicas, erguidas em lugares sem vivalma ou construídas mesmo ao lado umas das outras.
Biliões injetados em bancos falidos para depois enviar para lá políticos administrarem a coisa.
Escolas públicas com torneiras de autor e centros de congressos onde a definição de orçamento controlado é uma tirada humorística.
Sindicatos transformados em verdadeiras corporações dos que já melhor vivem, em nome de direitos adquiridos, sendo curioso que ninguém fale de deveres na mesma circunstância.

Numa conferência em Paris, em 2011, o já ex-primeiro ministro José Sócrates afirmou que para países como Portugal “pagar a dívida é uma ideia de criança”.

4 anos depois, quer-me parecer que esse dito detalhe despiciendo transformou-se na verdadeira conta para pagar que, dia após dia, custa sangue, suor e lágrimas, sob a forma de sacrifícios cada vez mais dolorosos exigidos ao mais comum dos cidadãos.

E a via sacra ainda não saiu da primeira estação.

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