O leitor terá já a noção de que num dia provavelmente próximo se iniciará a prescrição de medicamentos através da “receita sem papel”, tão pomposamente designada por “desmaterialização da prescrição eletrónica de medicamentos”.
A entidade responsável aponta inúmeras vantagens, tal como o facto de “permitir poupança e maior segurança/controlo na emissão de receitas”.
Após a prescrição (que passa a ter várias possibilidades de emissão: sms, e-mail ou impressão do guia de tratamento), o utente dirige-se a qualquer farmácia, podendo levantar o receituário prescrito.
Todo o cenário previsto não expõe as questões que já se levantam relativamente a todo o processo, antes mesmo do seu início.
Como será este processo com os maiores usuários das farmácias portuguesas – os idosos? Difícil será que tenham a sua receita nas sms do seu telemóvel ou no seu e-mail. No caso de não conseguirem comprovar a sua identidade na farmácia, terão que ter a forma impressa da prescrição – guia de tratamento. Onde reside aqui o conceito de desmaterialização?
Estes usuários estarão informados sobre o que será necessário para ir à farmácia comprar os seus medicamentos? Há tentativa de informação eficaz da comunidade?
Mais ainda: é uma realidade que os meios informáticos obsoletos de algumas das unidades de saúde são manifestamente insuficientes para que esta prescrição seja efectuada no prazo estabelecido – o próximo dia 1 de Abril de 2016.
Como poderá, por exemplo, o seu Médico de Família fazer uma prescrição que não é suportada pelo seu material informático de trabalho? O que pensará este médico quando a resposta tarda para agilizar o processo, quando ele próprio avisa as entidades responsáveis sobre a necessidade desta actualização? E o que fará este profissional quando (como de costume) o sistema falha em pleno horário de trabalho?
Lá terão, médico e paciente, que (des)esperar pela bem dita receita. Lá terão os restantes utentes que esperar mais um pouco pela sua consulta. Lá terá o médico que sair do seu local de trabalho 2 horas depois da sua saída prevista, sem que isso seja contabilizado.
Mas continua-se a manter a “fé” na disponibilidade dos profissionais que defendem um bem maior, que é a oferta de cuidados à população, a sua optimização e a manutenção de uma boa relação médico-paciente. Mas tudo isto, à custa dos profissionais que estão no terreno, uma vez que nenhuma tarefa lhes é facilitada em todo este processo.
É uma realidade: não se podem fazer omeletes sem ovos… tal como não devem ocorrer consultas em ambientes adversos, pelas más condições dos edifícios das unidades de saúde, com obras de melhoramento prometidas há muito… tal como não se deve adiar indefinidamente a optimização dos cuidados de saúde prestados em Unidades de Saúde Familiar…
Apesar de toda esta adversidade, continuo a ver profissionais de saúde excepcionais, cheios de vontade de melhorar cada vez mais os cuidados que prestam, bem como as suas condições de trabalho e a satisfação dos utentes. Estes não querem estátuas ou memoriais, mas sim respeito e condições de trabalho.
Só assim, e todos juntos, conseguiremos que estas mudanças sejam bem sucedidas, não esquecendo nunca o interesse maior que nos norteia: os utentes, a sua confiança nos cuidados prestados e a sua saúde.