Opinião – As mil e uma noites

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Pedro Mota Curto

Pedro Mota Curto

Xerazade tem muitas histórias para contar ao Rei. Encadeadas umas nas outras, as narrativas sucedem-se, rivalizando entre o exótico e o insólito.

Xerazade precisa de manter a curiosidade e o interesse do seu soberano. As suas noites têm que ser ocupadas mantendo o interesse do Rei pelas suas intermináveis histórias, quase todas inacreditáveis, apesar de verídicas, dizem.

Ao amanhecer, a bela Xerazade interrompe os seus sonoros e imaginativos enredos que tanto captam a atenção real. Ao cair da noite retomará o discurso, como que hipnotizando o seu delicado ouvinte, noite após noite. E assim foi e assim será. Das suas tramas dependerá a sua sobrevivência e integridade.

O explorador, viajante e aventureiro inglês Richard Francis Burton ( 1821-1891 ) foi quem traduziu da língua árabe para a língua inglesa um livro erótico intitulado Kamasutra assim como uma coletânea de contos orientais com o título As Mil e uma Noites, entre outras obras árabes desconhecidas do mundo ocidental.

No entanto, desta vez, a Xerazade que nos enriquece e inebria com os seus intermináveis contos das mil e uma noites, é uma Xerazade de 2015, residente em Portugal, um país de inacreditáveis histórias, umas a seguir às outras. A beleza desta Xerazade contrasta com a tristeza e a pobreza de um povo mal governado, mal dirigido, sujeito a grandes malfeitorias por parte de quem tem como único objetivo na vida enriquecer o mais rapidamente possível.

Alguns pobres ou remediados tornam-se ricos, milionários, aparentemente sem se perceber muito bem como. A Ética é uma palavra desconhecida, anacrónica, incómoda. Talvez o título de um livro redigido pelo filósofo Bento Espinosa ( 1632-1677 ), filho de judeus portugueses refugiados na Holanda no século XVI.

Miguel Gomes nasceu em 1972, estudou teatro e cinema. Hoje é realizador de cinema. Conceituado. Triunfou. Os seus filmes têm sido aclamados pela crítica especializada. Em 2015 estreou um imenso filme dividido em três partes, ou em três volumes. O seu título? As Mil e uma Noites. É um filme ou são três filmes? Seja como for, ouve-se e vê-se a famosa e bela Xerazade que ao longo de mais de seis horas nos vai relatando intermináveis histórias, encadeadas, insólitas e que nos prendem do princípio até ao fim. Tudo se passa num país chamado Portugal que mercê de vicissitudes várias tem assistido, nos últimos anos, a um formidável retrocesso civilizacional.

O primeiro filme intitula-se O Inquieto, o segundo, O Desolado e o terceiro, O Encantado. Histórias de um país europeu em crise. Sobrevivências. Gerações perdidas. Retrocessos. Histórias verídicas de um país em retrocesso. Histórias insólitas, singulares, mágicas. Serão verdadeiras? Ou tudo não passa de imaginação maldizente? Talvez estejamos perante uma imaginação delirante. Sim, é verdade, há quem não acredite nos contos das mil e uma noites.

Mais de seis horas de filme, com baleias que explodem na praia atlântica, animais que falam, sereias que dão à costa, homens e famílias desempregadas, florestas que ardem de noite, amores intensos, desolação e encantamento, homens que mergulham no mar invernoso, homens do poder que se passeiam em camelos e que têm certos problemas, feiticeiros agiotas, um assassino escondido na floresta que sonha com putas e perdizes, mortos, fantasmas e moradores de prédios dos subúrbios, uma passagem de ano inesquecível, homens enfeitiçados que ensinam pássaros a cantar. E eles cantam. Nos campeonatos.

Este filme de Miguel Gomes, em 2015, foi exibido, elogiado e premiado em diversos festivais de cinema, um pouco por todo o mundo, desde Cannes até à Nova Zelândia e Austrália. Nós por cá, tudo bem. Os três volumes das Mil e uma Noites passaram pouco. A sua exibição foi fugaz. Poucos portugueses o terão visionado. Temos o 007 e a Guerra das Estrelas. E agora mais um banco para pagar. Já vamos no quarto banco que os portugueses têm que pagar. Tudo bem. As histórias das mil e uma noites são intermináveis. Já vimos os vários volumes deste filme. O encantamento continua. Só falta dizerem que a culpa foi de Richard Burton.

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