Para quem não sabe, o tempo vai resolvendo as suas questões pendentes. A contenda sobre a legitimidade do novo governo ficou relegada para segundo plano a partir do momento em que se tornou conhecida a composição das novas pastas ministeriais. Uns académicos, outros inexperientes, outros repetentes, outros amigos do amigo, ouvimos de tudo um pouco… Mas o mais controverso foi aquele que muitos apelidaram de “improvável”. De certa forma, eu estava à espera de ser surpreendido com o novo nome para a Cultura. E assim foi.
Não esperava que fosse João Soares. Corrijo: aguardava por ele em várias outras pastas, o que atesta a sua robustez intelectual e a enorme capacidade de trilhar os caminhos mais difíceis. Por isso vi com algum motejo as críticas desgarradas que os profetas da desgraça lhe tentaram colar, com uma ponta de escárnio a luzir-lhes nos lábios, precipitando-se em comentários funestos. E, como se sabe, habitualmente, os precipícios conduzem nos a caminho nenhum.
Tenho para mim que João Soares é um homem invulgar. Um homem culto, sereno, cujas ideias se afirmam mais do que a personalidade – o que é um feito raro… Um homem com experiência política e habituado à exposição mediática, que discute com elevação e não é temeroso. Um homem que afirma as suas convicções pela força da razão. Um homem de consciência livre e sem imposições. Com experiência internacional, parlamentar e autárquica. Com passado, presente e futuro. Creio, por isso, em que saberá transformar a cultura num motor do desenvolvimento. E acredito em que terá a visão correta da relação entre a cultura e o setor público dos media, que aqui tenho defendido, integrando na Cultura a tutela da RTP e da Lusa. Isso, para quem segue de perto as questões culturais, só pode encher-nos de esperança.
Quanto ao novo ministro, há muito que nutro por ele um grande respeito e admiração. Amigos comuns sempre me deram do seu caráter e seriedade as melhores referências. Chegámos a cruzar-nos algumas vezes no Bar Dom Pedro V, na zona do Jardim de São Pedro de Alcântara, em Lisboa, onde me encontrava ao fim da noite com o saudoso Fausto Correia. João Soares vinha ao seu encontro e acabávamos a falar com grande simpatia e fraternidade. Lembro-me de ele me ter perguntado certa vez o que achava da cobertura jornalística da vida política. Ficámos demoradamente a conversar, na fímbria da noite, sobre utopias e sociedades felizes. Nestas conversas livres, a imaginação foge descalça para a rua e encadeia as sombras pardas, correndo em busca de existências mais justas, que prometem amanhãs melhores.
Eu nunca tive ocasião de o abordar quanto ao episódio em que sobreviveu à queda de um avião em Angola. Nem nunca cheguei a ter a oportunidade de lhe dizer o quanto gostei de entrevistar o seu pai e de ouvir recitar a sua mãe. Mas, ao contrário do que muitos acham, vejo João Soares como alguém cuja maior sobrevivência é justamente a de um certo estigma público quanto ao inexorável vulto do seu pai. É verdade. Se pensarmos bem, dificilmente se sobrevive àquele homem cuja existência é grande como um tempo, densa como a história, heroica como um país tornado livre. Por isso alguns vaticinaram a João Soares o ocaso das sobras da vida. Sempre achei o inverso. Sempre vi nele a força tranquila do homem que soube criar o seu espaço, que tem o seu pêndulo e determina o seu caminho.
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