Opinião – (Des)formação médica

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Inês Morgadinho Barros de Mesquita

Inês Morgadinho Barros de Mesquita

Um médico só se torna especialista após um ano de internato geral (o ano comum) e quatro a seis anos de internato de formação específica (“especialidade”).

Ser interno de qualquer especialidade exige dedicação, espírito de sacrifício e amor à causa. Sempre pondo o doente em primeiro lugar, em detrimento de fins-de-semana em família ou jantares entre amigos, passando várias noites em claro, na missão da nossa vida.

Significa ser avaliado continuamente durante anos seguidos, investigar, publicar artigos e dar formação aos mais novos. Implica atualização sobre o que de melhor se faz no mundo, estudando e aprendendo com os colegas mais velhos, mentores e orientadores de formação. Implica no mínimo 40h de trabalho semanais (distribuídas em consultas, enfermarias ou bloco operatório) com 12h de urgência por semana, muitas vezes ultrapassadas com outras 12 ou 24 horas extra.

Os médicos portugueses são reconhecidos internacionalmente pela excelência da formação médica e desempenho profissional.

No entanto, esta excelência está posta em risco, pelas sucessivas decisões inconsequentes dos gabinetes ministeriais. Vejamos porquê:

– tentativa de extinguir o internato do ano comum – ano generalista para adquirir competências básicas antes da entrada numa especialidade;
– aumentar de 12 para 18 horas as urgências semanais obrigatórias, sendo quase metade das 40 horas semanais em regime de urgência, muitas vezes sem folgas nem descanso compensatório, por imposição das hierarquias;

– condições gerais de prestação de cuidados de saúde deficitárias: as fusões hospitalares reduziram o número de camas dos internamentos e entupiram as urgências dos hospitais centrais, sem equipas reforçadas; além de médicos, insuficiência de enfermeiros e técnicos, macas, material básico e fármacos, cuja qualidade (?) é apenas escolhida pelo preço mais baixo; profissionais de saúde esgotados com tanta responsabilidade acumulada;

– doentes que, pelos cortes cegos nos rendimentos não conseguem cumprir as medicações prescritas nem deslocar-se às consultas, o que resulta em doentes que chegam às urgências hospitalares em condições clínicas mais graves, também por cuidados de saúde primários pouco acessíveis;

O efeito “dominó” evidencia-se: sem segurança para os doentes, os profissionais estão esgotados e a formação dos médicos internos fica prejudicada. A situação de calamidade ainda por revelar vai custar muitos milhões de euros a longo prazo, pelas complicações inerentes a gestões insensíveis. A poupança é fictícia.

Aguenta-nos a vontade de fazer o melhor que sabemos pelos doentes, suportando diariamente estas (sub) condições, com exaustão física e psicológica, em burnout ou com absentismo laboral por doença.

Resta-nos a Ordem dos Médicos atenta e aguerrida, a apontar sem medo as dificuldades e a expor situações que não deviam existir numa Europa dita desenvolvida.

Chega. Deixem-nos crescer e aprender a tratar e a fazer a diferença na vida dos doentes. Sem nós, o futuro do SNS não existe. Pensem nisso Senhores Ministros, nem todos os meios justificam os fins.

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