Alice Vieira é uma das escritoras portuguesas para públicos jovens mais lidas e premiadas. O seu incansável empenho em levar a literatura às crianças e aos jovens alunos, nas escolas de todo o país, tem continuado a conquistar leitores e a contribuir para formar pessoas que gostam de livros. Em Coimbra, onde apresentou, na Livraria Lápis de Memórias, o seu mais recente livro, de poesia, com o título “Os armários da noite”, explicou, em entrevista ao DIÁRIO AS BEIRAS, a razão da enorme energia que a move. Agora, encontra-se a trabalhar numa peça de teatro, na biografia da Condessa de Ségur e num livro de “expressões”
“Os armários da noite” é um livro de poesia. Uma área da escrita que a maior parte das pessoas não associa a Alice Vieira?
Em sete anos, tenho três livros de poesia publicados, este é o terceiro. De facto, eu tenho um primeiro livro de poesia publicado muito cedo, creio que em 1964, com o título “De estarmos vivos”, tem uma capa lindíssima, com três pingos de sangue, que já não sei quem fez.
A poesia, portanto, logo no início da sua obra?
Esteve lá, logo no início. Eu entrei para o jornal, tinha 18 anos, depois de ter começado a enviar textos para o suplemento juvenil do Diário de Lisboa. E a maior parte deles até eram poemas. Eu lembro-me que o primeiro poema que eu tive publicado, num jornal “a sério”, foi um poema integrado numa “caixa” numa reportagem sobre Lisboa, do Renato Boaventura, um grande jornalista, e que saiu em vários números do Diário de Lisboa. Ele perguntou-me se podia publicar aquele poema que estava no suplemento juvenil. E eu fiquei… um poema, num jornal “a sério”!
Marcou, de alguma forma, a sua entrada no jornalismo, mas também foi um interregno na poesia?
Realmente, depois, nunca fiz muita poesia. Escrevi muito mais prosa, crónicas, até entrar mesmo no jornalismo e, então, passei a escrever tudo, que era o que se fazia na altura. Mesmo jogos de futebol, com dois grandes fotojornalistas, o António Capela e o Nuno Ferrari. Lembro-me de um Sporting-Benfica, em que o Sporting ganhou e eu que sempre fui pelo Benfica… São coisas que não se esquecem. Depois, realmente, nunca mais publiquei poesia.
Mas não deixou de escrever?
Não deixei. Mas a poesia é diferente de tudo o resto na escrita, pelo menos para mim. Que ninguém me diga, por exemplo, quero um livro de poemas teu para o ano. Um romance escreve-se sem nenhum problema, até para o próximo mês. A poesia foge muito a isso, a poesia é só quando aparece.
A poesia foge à “prática” da escrita?
É isso, mas não é só. Eu costumo dizer que, se tivesse pensado bem, escrevia poesia com um heterónimo, porque é tão diferente de mim. Eu escrevo de outra maneira. Até o próprio ato da escrita, eu escrevo tudo em teclado, mas a poesia escrevo com caneta, sempre à mão. Depois, para trabalhar e eu trabalho muito os textos, mesmo a poesia, já o faço no computador. Mas o princípio é assim, parece que sai do bico da caneta, vem da cabeça direitinho ao bico da caneta. Eu gosto muito de uma definição de poesia, que diz que poesia é quando uma emoção encontra uma técnica. E é isso, a emoção aparece, depois olho para aquilo e vejo o que pode ser aquilo, em termos de técnica.
Este é o seu terceiro livro de poesia, sem considerar o tal primeiro, “De estarmos vivos”?
Esse nem era assinado com o meu nome. Quer dizer, também era o meu nome. Eu só passei a assinar Alice Vieira quando sai para o Diário Popular, no Diário de Lisboa era Alice Vassalo Pereira. Então, quando escrevi aquele que eu considero ser o meu primeiro livro de poesia, queria uma opinião mais abalizada, não o queria entregar a um amigo… Então descobri que havia um prémio – Maria Amália Vaz de Carvalho – que tinha um júri muito competente, o Fernando Martinho, o Fernando Pinto do Amaral. E tinha uma garantia, que foi um dos grandes ensinamentos que eu aprendi com a Maria Alberta Menéres, só tinha um prémio. Ou ganhas ou não ganhas. Depois, era um prémio para originais e assinados com um pseudónimo. Eu enviei o livro e ganhei. E, recordo-me, estava numa escola, no Tramagal, e recebi um telefonema do Fernando Pinto do Amaral que só me dizia “não és tu, pois não? É que ninguém aqui no júri acredita que és tu!”.
Essa espécie de “estranheza” relativamente à sua poesia mantém-se?
Eu penso que sim. Eu estive com o Manuel Freire no lançamento do livro em Óbidos, na semana passada, e ele escreveu-me um postal – eu e o Manuel Freire temos a mania dos postais – em que ele dizia que tinha gostado muito, mas onde dizia que é um livro muito duro.
Uma coisa que as pessoas não associam a Alice Vieira, nem à sua obra?
Sim. Embora nos meus romances juvenis eu não seja muito cor-de-rosa, mas acabam sempre bem, porque eu sou otimista e não há nada a fazer. Este livro é um pouco mais duro, realmente.
É na poesia que expressa essa sua visão mais dura com a vida?
Não sei. Talvez seja. Por exemplo, o primeiro poema que eu escrevi para este livro [que não é o primeiro do livro] aconteceu quando eu estava à espera dos meus netos mais novos, que estavam a fazer exame no Instituto de Espanhol, que é no Jardim Constantino, sentei-me lá numa esplanada e, de repente, senti-me muito mal. Em frente do Jardim Constantino está o prédio onde eu nasci. E o poema que escrevi é realmente muito duro, porque são as recordações todas, eu estava ali e o poema saiu-me quase de jato, depois cheguei a casa e mudei tudo, mas foi assim.
Mas é isso, a poesia acontece-lhe?
Exatamente. Saem assim, as frases. Depois tenho um trabalho muito complicado de técnica. Mas tem de sair assim, não posso decidir que vou escrever um poema sobre aquilo, não dá. Por isso é que os livros de poesia só aprecem de vez em quando. Depois, há outra coisa, que eu aprendi, agora com a Rosa Lobato Faria. Estamos a escrever um livro de poesia, o que sobrou, deita-se fora. E é sempre isso que eu faço. Porque isto foi assim naqueles dias, naquele mês, naquele ano. Os outros hão de ser depois. E eu acho que os meus três livros são muito assim e muito diferentes também.
E essa tal dureza aconteceu-lhe agora porquê?
Este livro já estava feito há uns tempitos, mas editar poesia é um pouco complicado. O que significa que este livro foi feito há dois anos. E essa foi uma altura muito complicada, portanto aquela dureza é a dureza de há dois anos, tirando a da infância, que é a dureza da vida inteira. Hoje escreveria de forma completamente diferente. Mas não, não dá, não me sai nada.
Como é que tem sido a reação do seu público, muito e muito heterogéneo?
Eu tenho um público muito próximo, as pessoas vêm falar comigo na rua, sabem o que eu escrevo, o que eu faço. Como o que eu escrevo para jovens também é para adultos, isso ajuda. O que dá um público muito vasto.
E a reação a este livro?
Tem sido muito boa. Embora não se leia muito poesia. E eu acho muito engraçado, que tem um efeito muito positivo sobre os livros, sobre a poesia, que são as redes sociais. Através do Facebook, a quantidade de pessoas que escreve coisas do livro, que transcreve coisas do livro. E isso é muito importante.
Hoje há esse passa palavra que é muito eficaz?
Muito eficaz, mesmo muito eficaz. Pessoas que só me conhecem dali, das redes sociais, mas que me leem e me tratam como se fossem amigos de infância. Há também os blogues, que transcrevem, que falam sobre os livros. E isso faz com que as coisas hoje sejam completamente diferentes. Antes, publicava-se um livro e era quase em segredo, quem é que sabia, ficava ali numa roda de amigos. Agora não, agora é tudo público e isso é uma grande coisa.
Agora ainda está a apresentar este “Os armários da noite”. E depois?
Estou a fazer tudo ao mesmo tempo. A apresentar o livro, a ir às escolas…
Continua a ter a vida cheia, que sempre teve?
Eu devia parar um bocadinho, a minha médica diz-me que sim. Eu paro um pouco, mas depois esqueço-me logo. O lançamento do livro acaba hoje [terça-feira], aqui, em Coimbra. Depois vou retomar a apresentação em janeiro. Porque, agora, tenho as escolas. Vou estar em Mafra para a semana…
A sua presença nas escolas tem sido constante?
Tem, mas não pode continuar tão constante. Um dos meus problemas é que as pessoas não entendem que eu não tenho 20 anos e as solicitações continuam a ser muitas, muitas. Depois tenho uma peça de teatro para entregar ao Carlos Avilez até ao final do ano, que é já amanhã, e ele já espera há tanto tempo, mas que está praticamente pronta. Depois, tenho um livro para os mais pequenos, meio didático, que é uma coisa que escrevi há um ano ou dois e que se chama “Expressões com história”. Quer explicar o que é que quer dizer “ficar a ver navios”, “Maria vai com as outras” e que foi muito engraçado de escrever.
E que é mesmo para os miúdos. Porque eles não sabem nadinha dessas coisas?
O que é mais curioso é que os adultos também não sabem, como deu para perceber numa reportagem que passou na SIC a partir do meu livro. São 40 expressões. E ainda os dias, os muitos dias que existem, dia disto, dia daquilo, dia daqueloutro. Destes, ainda estou na fase de recolher dados, para saber porque é que há um Dia da Felicidade, porque é que é naquele dia. Ninguém se entende, porque há os dias nacionais, os dias europeus, os dias mundiais. Depois, tenho a Biografia da Condessa de Ségur, depois de ter feito a Biografia da Enid Blyton, há dois anos. Como eu já disse, depois de fazer a biografia de uma “cabra”, agora faço a biografia de uma grande mulher.
O trabalho continua a ser mais que muito. E o contacto com as pessoas?
Eu tenho muito trabalho, mas as pessoas estão sempre em primeiro lugar. Não deixo de jantar com os amigos, faço jantares para festejar tudo e mais alguma coisa. Os meus netos vivem longe, mas quando estão cá divertimo-nos muito. Eu tenho uma máxima, que julgo que é muito certa: Quem tem muito que fazer, tem sempre tempo para tudo. Quem não tem nada para fazer é que não tem tempo para nada. É assim, eu vejo isso com as pessoas, ao pé de mim, nunca têm tempo para nada. Eu não, continuo a fazer tudo. Vou muito à música, felizmente vivo ao pé da Gulbenkian e esforço-me por não perder os concertos das sete horas, vou a lançamento de livros de amigos.
Há essa parte da jornalista que nunca perde?
Sem dúvida. Quem é jornalista é jornalista sempre. E depois, há dias estava a falar com uma amiga, a Piedade Braga Santos [filha do maestro Joly Braga Santos], e chegámos à conclusão que bom chegarmos à nossa idade e que bom as pessoas que conhecemos, com quem nos demos. Muita gente fantástica. Eu tive a sorte de viver algum tempo em Paris e também tive a sorte de conhecer o Picasso, o Jorge Semprún, o Jorge Amado.
É uma grande riqueza?
É uma riqueza. E cá, há dias alguém ficou espantadíssimo quando eu disse que conheci a Amélia Rey Colaço. E conheço os de agora, claro. A Verbo publicou há pouco tempo a “Mafalda toda”, que fez 50 anos, para além da banda desenhada, publicou uma entrevista, a primeira do Quino em Portugal, que fez comigo. E isso foi fantástico. Quem levou a “Rosa, minha irmã Rosa”, em 1979, para o Brasil, para ser editado, foi o Pedro Bloch. As pessoas que conhecemos fazem de nós o que nós somos.