“Não digam que o SNS é insustentável economicamente”

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ANTONIO ARNAUT 1 CJM

Considerado o “pai” do Serviço Nacional de Saúde (SNS), António Arnaut considera que o Governo tem feito “muitas restrições desnecessárias”

 

A atual crise económica e financeira está a criar dificuldades no Serviço Nacional de Saúde (SNS)?
A troika estabeleceu algumas restrições, mas o Governo ou o ministro da Saúde Paulo Macedo – que considero uma pessoa sensível às questões sociais, apesar de discordar de muitas das medidas tomadas – foram além das exigências da troika. Porque a troika mandou cortar 500 milhões de euros na saúde e cortaram mais de mil milhões; e em dois anos cortaram 1.500 milhões no orçamento da saúde. Estou convencido que isso se deveu sobretudo a pressões do ministro das Finanças. Acho que o primeiro-ministro não é um entusiasta do SNS, mas agora parece que se tornou, porque já fala nele e no Estado Social. Porque não há outro caminho decente para Portugal. É uma questão ética, moral. Deixamos à sua sorte quem não têm dinheiro para pagar uma consulta, um medicamento?

Acredita que o SNS é economicamente sustentável?
Hoje, o setor público, o SNS, gasta por pessoa, por ano, à volta de 800 euros, pois tem um orçamento anual que ronda os 8 mil milhões. É uma das despesas per capita mais baixa da Europa, para não dizer a mais baixa, e o nosso serviço é dos melhores da Europa. Gastamos cerca de 5% do PIB, é pouco para os benefícios alcançados, em dignidade das pessoas, em segurança na doença, em coesão social, em saúde, individual e pública, e até em retorno económico. Então 5% do PIB é muito? Não, porque nós pagamos por ano de juros, pelo resgate do FMI, mais de 7 mil milhões, que é quase o orçamento do SNS. Portanto, não digam que o SNS é insustentável economicamente.

O essencial é a vontade política?
Sim, a questão é política, é preciso ter vontade política e sentido do dever perante todos os portugueses mas especialmente perante os mais fracos, porque são esses que devem ser objeto da preocupação dos governantes. Quando fiz o despacho que abria a toda a população, gratuitamente, os serviços públicos existentes, o ministro das Finanças, Victor Constâncio, ficou irritadíssimo comigo. Telefonou-me a perguntar se eu tinha feito as contas. Eu respondi: “Não, as contas fazes tu, que és ministro das Finanças”.

Acredita que pode haver um retrocesso no SNS?
Seria um retrocesso civilizacional. A história às vezes dá uns passos atrás, mas seria um grande retrocesso e provocaria um levantamento popular. Não há nenhum governo que esteja em condições de fazer esse retrocesso, porque seria imediatamente demitido, o país já não aceitaria isso.

Mas o setor privado pode vir a ocupar parte do espaço do SNS?
Penso que o Governo tem feito muitas restrições desnecessárias. Nos últimos três anos houve uma redução de cerca de três mil camas no setor público e houve um aumento de duas mil camas no setor privado.

As taxas moderadoras, que alguns consideram copagamentos, também aumentaram.
Sim, as taxas moderadoras transformaram-se em verdadeiros copagamentos. Hoje paga-se 5 euros numa consulta num centro de saúde, mas se for da ADSE paga 3,99 numa clínica privada. Hoje numa urgência hospitalar paga 20 euros de taxa moderadora, se fizer exames pode pagar até 50 euros, mas os privados anunciam as urgências por 40 euros. Há muitos casos em que o privado cobra menos do que o setor público e isso é um paradoxo, não pode ser. Dá impressão que essas taxas moderadoras foram feitas para debilitar o setor público e engrossar a clientela do setor privado. E isso não pode acontecer. Enquanto o SNS, por cortes orçamentais, pelo aumento das taxas moderadoras e por outras medidas, é sujeito a uma certa debilitação, em paralelo o setor privado está a expandir-se e a fortalecer-se.

Pode ser uma estratégia?
Há uns 15 anos atrás, um ministro da Saúde afirmou que, numa década, a maior parte dos serviços de saúde seriam prestados pelo setor privado. O ministro era Arlindo de Carvalho, que iniciou o desmantelamento do setor público, que depois foi travado por governos do PS e até por governos do PSD, muito devido à pressão da opinião pública, que quer manter a qualidade do SNS.

O SNS vai sobreviver?
Sim, enquanto houver Constituição. Às vezes dizem que eu sou o “pai” do SNS, mas sou apenas o fundador, o autor da lei. Mas o SNS tem uma “mãe”, que é quem lhe tem valido, como geralmente acontece, que é a Constituição da República. Se não fosse a Constituição o SNS já teria sido revogado. Porque um governo constituído pelos mesmo partidos que hoje governam, tentou isso em 1982, e o Tribunal Constitucional não deixou.

Mas o setor privado da saúde tem o seu espaço?
Que fique bem claro. Eu não sou contra o setor privado. Aas pessoas devem ter a liberdade de o procurar, porque têm um subsistema de saúde ou um seguro. Mas o setor privado não pode viver à custa do SNS ou à custa do Estado. E segundo as minhas informações, cerca de metade da receita do setor privado provém do Estado. Ou do SNS, através de convenções, ou dos subsistemas de saúde. Em 2010 a ADSE pagou ao setor privado 500 milhões, em 2011 pagou 400 milhões. Parte desse dinheiro podia ir para o SNS. Há muitos grupos de pressão, interesses e influências. Se um grupo privado ligado à saúde, financia uma campanha eleitoral de um partido, se esse partido for para o governo tem que dar alguma espécie de retribuição, e nós sabemos que tem dado.

Está preocupado com o futuro do SNS?
Estou preocupado com o futuro de Portugal, porque há na Europa um plano meticulosamente executado de destruição do Estado Social. Já o Habermas disse, há um ano ou mais, que se assiste na Europa à desconstrução do Estado social e da democracia. Mas também estou confiante no povo e na capacidade de luta do povo português e das forças progressistas.

O SNS mantém a qualidade?
Sim. Apesar das dificuldades, das listas de espera, de muitas carências, que não podemos omitir, o setor público ainda tem mais qualidade que o setor privado. Há mesmo pessoas de elevado nível económico que preferem o setor público em certos casos. Dei o primeiro passo, sem ele não haveria a caminhada, mas quem fez o SNS foram os profissionais de saúde, que o estão a fazer, permanentemente, e uma palavra de apreço a todos os profissionais de saúde tem que ficar aqui exarada, pela dedicação que, em geral, eles têm no SNS, porque ganham pouco, trabalham por vezes em condições precárias. E todavia a qualidade que existe é devida à sua dedicação, de todos, médicos, enfermeiros e técnicos.
Dora Loureiro

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