O meu amigo Pena, engenheiro eletrónico, pianista amador e também algo louco, sempre foi uma fonte inesgotável de histórias e peripécias, algumas de fazer rir às gargalhadas. Uma vez, na propriedade dos seus pais numa Beira já muito alta, no fim de um Verão com um bom Setembro, decidiu fazer um concerto de piano para o pessoal lá da terra. Tocaria umas peças escolhidas, pouco complexas de Chopin, Schumann e Mozart. Coisas que dava mesmo para as pessoas gostarem.
Perante a possibilidade da sala grande da casa ser insuficiente (e também o desagrado dos pais em terem a bela sala cheia de gente que mal conheciam) decidiu levar o pesado piano para o armazém onde daria o concerto. Foi um trabalho difícil, conseguido com o esforço de seis homens possantes e grossos paus almofadados com serapilheira. O velho armazém cheio de cadeiras de vários tipos, bancos e caixotes com panos por cima, não era exactamente o São Carlos mas, se olhássemos só para o piano, com o fundo coberto, de alto a baixo, com panais da apanha da azeitona, até lembrava um bocado.
O Pena preparou o concerto ao pormenor e quando chegou o dia, às oito e meia já a sala estava apinhada. Às nove entrou o solista, smoking branco, impecável. Disse algumas palavras onde “respeito e homenagem aos que trabalham a terra” foi repetido, pelo menos, duas vezes.
O noturno nº3 foi bem tocado e agradável de ouvir, apesar da péssima acústica e do frequente cacarejar de galinhas que, com os seus hábitos perturbados, estavam inquietas e se perseguiam em correrias estranhas.
Tudo corria normalmente quando o incidente ocorreu.
Foi na Marcha Fúnebre. Um frango perseguido, desenfreado, saltou para o teclado e introduziu uma escala dissonante na obra de Mozart. – Ah! Filho da mãe que te mato! Gritou o solista que saltou do banco e parecia decidido a perseguir a ave quando, de súbito parou e pediu em voz alta: – Apanhem-me o bicho e guardem-no, por favor. Voltou atrás e sentou-se de novo ao piano.
Para pasmo dos circunstantes o Pena tocou a parte da Marcha que estava a executar, mas agora com os acordes introduzidos pelo frango e continuou a tocar a obra, com ar pensativo, entrando com o novo tema e o compasso apropriado.Toda a gente gostou e o incidente foi muito recordado. O Pena quis o frango num compartimento separado e tratado com todo o cuidado.
No dia seguinte, com o piano já no seu lugar, ligou um gravador, foi buscar o frango e, partindo sempre do mesmo ponto e com o animal na mesma posição, pô-lo a andar em cima do teclado em simultâneo com os acordes da marcha fúnebre, provenientes de umas colunas.
Para melhorar o desempenho do frango colocava um recipiente com milho no fim dos trajetos. Repetiu esta experiência vezes sem conta, dias a fio, sempre com a marcha fúnebre a tocar. Mês e meio depois foi processar os resultados no computador.
Desprezou os registos menos conseguidos porque o animal escorregou, ou parou, e processou os restantes, obtidos dia após dia, até encontrar sequências sonoras representativas do todo. O que o Pena pretendia era não só descobrir se havia um modelo rítmico para as diversas caminhadas do frango, num sentido e no outro mas, e sobretudo, ver se, com a repetição da audição, o padrão se modificava e se apresentava alguma corelação com a marcha fúnebre. A partir do sexto dia o padrão rítmico começou a alterar-se e ao vigésimo dia os espectros de frequência mostravam componentes na marcha do frango, não existentes no início, Esta tendência acentuou-se até estabilizar mas a sua ligação com a marcha fúnebre não era evidente.
Falámos sobre a experiência. Com o seu ar infantil disse-me: Que as galinhas reconhecem sons já era sabido, basta chamar ou bater no tacho da comida e lá vêem elas desenfreadas. Reconhecer música e marcar um ritmo é que não sei se são capazes.
O que pretendes fazer a seguir? Perguntei-lhe.
Então ele explicou: Já viste o que era ter frangos de escola, como os cavalos!