Opinião – Escamoteando o real

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Aires-DinizAires Antunes Diniz

Custa a aceitar que os problemas do dia-a-dia sejam escamoteados por quem tem o dever funcional e moral de os definir, informar e resolver. Assim, há poucos dias, uma senhora apresentou-se nos noticiários da RTP a “explicar” que as crianças iam à escola almoçar durante as férias, só porque os pais estavam a trabalhar e não tinham possibilidades de lhes dar o almoço. Com certeza que a razão mais plausível era os pais não estarem a trabalhar e, por isso, não tinham possibilidades de lhes dar o almoço. Era esta maneira de informar só uma forma de desculpar o poder político que lhes desemprega os pais. Trata-se de algo que lembra Salazar desculpado por alguém:

“Porventura, mandou assassinar, enforcar ou esquartejar alguém? Nada disso. O presidente do Conselho, porque é eminentemente cristão e tem no seu sangue a conhecida brandura da alma portuguesa, é até, e ainda bem, francamente generoso: assim, por exemplo, castigou certos chefes revolucionários, fixando-lhes residência nas ilhas mais belas e aprazíveis do Atlântico” . Mas, todos os que sabem história sabem que as ilhas foram também as de Cabo Verde, onde morreram muitos portugueses, tanto no Tarrafal como fora dele, mostrando a mentira que se propalou e propalava.

Como todos sabemos, mesmo aqueles que fazem ver que não percebem nada, os tempos vão difíceis e desesperantes e alguns, e sempre demasiados, resolvem partir, deixando-nos mais pobres neste tempo medonho pois nos enche de receios. De facto, desespera o muito que se manipula, embaraça os raciocínios e impede que percebamos o que se passa. Assim, como acontece agora com a questão das reformas, discute-se o assunto, esquecendo os cálculos atuariais que determinam os valores a descontar nos salários para que as reformas sejam as que se contrataram e, ainda, os empregos arranjados ilegalmente para favorecer os amigos que se vão reformar.

Por outro lado, uma das características do capitalismo atual é a sua incapacidade de calcular as consequências das suas quimeras, decidindo sempre o que precisa para salvar a face “imaculada sempre”, mas só porque condiciona os governos numa série quase infinita de entorses do real. Não admira que ninguém consiga contar o que aconte e em Portugal como José Luís Peixoto em “Dentro do Segredo” fez recentemente para a Coreia do Norte, pois a descreveu de forma esquemática, quase só com base no que os interpretes Kim lhe mostraram e no algo que viu. Aqui o esquema é embaralhar o Povo. Por isso, entre nós tudo está escondido numa floresta imensa de ramos emaranhados de pensamentos desconexos, onde o desejo de manipular se concretiza por ação dos muitos Kim, que interpretam o real para o tornar mais confuso e inexplicável.

Convinha por isso que “alguém” nos “contasse” o nosso quotidiano como um universo concentracionário real, explicando assim as razões porque muitos são incapazes de o ver. De facto, só assim podemos construir um mundo melhor. Temos de descobrir como desembaralhando as teias que escondem o nosso quotidiano.

 

1 – O Liceu de Guimarães – Boletim Anual, Ano II, 1940-1941, p.22.

 

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