Na iminência de decisões que afectam grandemente a vida de cada um, depois de vários anos de insustentabilidade, custa-me entender este clima de paz podre e passividade indignada. As instituições do Estado nunca envolveram os cidadãos, nunca alertaram para a urgência de repensar as suas funções, nem se preocuparam em definir, em parceria, um plano a médio e longo prazo, transversal aos ciclos governativos, que afirmasse objectivos, justificasse investimentos e antecipasse resultados. A situação a que chegamos é só o resultado de todo esse percurso sem norte: uma dívida assustadora; o país infestado de infra-estruturas desnecessárias, incapaz de reagir ao avassalador nível de desemprego e à fuga dos mais novos e mais capazes; uma sociedade inundada em impostos que retiram a maior parte do rendimento das famílias e coloca agora em causa o Estado Social.
Perante isto, nestes dias de “hesitação e descrédito” esperaria ver e ouvir a mensagem e a acção de quem não se devia afligir, de quem deveria afirmar, como José Tolentino Mendonça, que olha o país “com esperança procurando contagiar os outros”, e de quem deveria ainda incentivar os portugueses a “perder o medo”. Aquele medo que tolhe a acção cívica e incapacita o debate consequente, com sentimento, e com objectivos que tenham algo a ver com a vida das pessoas. Apesar disso, assusta-me a possibilidade de se perder outro tipo de medo, aquele que funciona como barreira a algo mais assustador e violento, e que se liberta com o desespero de ter perdido tudo o resto.
Ao invés, o que vejo da acção das várias instituições do Estado é desconcertante e desanimador. O Presidente da República não faz ouvir a sua voz, nem sentir a sua presença, enquanto o país enfrenta sozinho o pior momento da sua história hodierna. O Governo apresentou um orçamento irrealista, não sendo capaz de uma atitude de confiança que dê alguma racionalidade e sentido a essa tormenta que torna insustentável a vida de grande parte das famílias portuguesas. Dá vontade de perguntar se o verdadeiro objectivo do Governo é destruir o país para, depois, pedra a pedra, começar tudo de novo. Os deputados transformaram o debate político numa espécie de jardim infantil no qual se ocupam a culpar uns e outros, como se o país e a vida das pessoas fosse um brinquedo que é necessário substituir porque já não funciona. É com profundo desânimo que observo a ligeireza com que falam do Estado Social, de despedimentos, da vida dos seus concidadãos, …, como se tudo isto fosse um simples jogo de sorte e de azar. Mas fico muito mais desconcertado com os portugueses. Aparentemente limitam-se a observar em directo, e sem surpresa, a confrangedora pobreza de espírito, de falta humildade e de sentido do dever, das pretensas “lideranças” e “elites”. E fico especialmente desanimado com a passividade com que admitem que lhes digam que não há alternativas. Todos deviam saber que quem decide bem pondera opções, analisa e escolhe um caminho, e que ao fazê-lo, por convicção, está consciente de que existem outras vias que necessariamente considerou. Dizer que não existem alternativas é simplesmente assustador. É um sinal de impreparação, de ausência de reflexão e, mais uma vez, de falta de racionalidade.
Miguel Torga dizia em 1961: “É um fenómeno curioso: o país ergue-se indignado, moureja o dia inteiro indignado, come, bebe e diverte-se indignado, mas não passa disto. Falta-lhe o romantismo cívico da agressão. Somos, socialmente, uma colectividade pacífica de revoltados” (Diário IX). Tenho medo que Torga tenha razão, mas tento, sem medo, contagiar-vos com a esperança de Sophia na liberdade, numa vida limpa e num tempo justo.
(artigo também publicado no re-visto.com)