Opinião – As árvores de Vale de Canas

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J. Pedroso de Lima

Foi em meados da década de sessenta. A Universidade de Coimbra decidira conceder o grau de Doutor Honoris Causa ao Prof. Carlos Chagas (filho), uma figura eminente da ciência e cultura brasileiras e grande dinamizador do intercâmbio luso-brasileiro na área das Ciências básicas ligadas à Medicina. Na Faculdade de Medicina de Coimbra havia vários elementos que tinham estado em cursos, ou estágios, no serviço do Prof. Chagas, o Instituto de Biofísica da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, o primeiro e mais importante do género no Brasil. O Prof. Rodrigues Branco e eu, estávamos entre estes e éramos, talvez, os mais ligados ao Prof. Chagas. Do programa da estada em Coimbra constava uma Conferência, que o Professor faria, na véspera da cerimónia, às onze da manhã, no anfiteatro do Instituto de Química Fisiológica. Não sei se o título era exactamente “As ciências básicas na medicina” mas, as três palavras grandes estavam lá, com certeza.

No dia anterior à conferência, ao fim da tarde, chegou o Professor ao Hotel Astória, num carro oficial onde o aguardavam diversas pessoas. Representantes de Instituições locais, o Prof. Branco a representar a Universidade, e eu regressado recentemente do Rio, depois de uma segunda estada no Instituto, a convite do próprio Professor.

Algum tempo depois das boas vindas, o Prof. Chagas chamou-me à parte: “Pedroso, amanhã de manhã antes da lição quero que você me leve a Vale de Canas para ver as árvores”. Certo, Professor, respondi mas já um tanto arrepiado pois estávamos num daqueles Novembros impiedosos.

Às nove lá estava eu à porta do Astória, no meu carocha cinzento.

Lá seguimos pela estrada sinuosa até ao Picoto e descemos depois a pé até ao vale onde estavam as árvores procuradas. Chovia a potes e havia vento. Com uma capa impermeável e um chapéu de abas, o Prof. viera prevenido.

Escrevia notas, metia e tirava papeis dos bolsos, apanhava folhas, cheirava, trincava, media e… eu, chapéu de chuva aberto, atrás dele, tentava guardá-lo o melhor que podia. A lama nos nossos pés já chegava às calças e eu sentia-me gelado e molhado até aos ossos.

Não sei se faltava ao Professor ver mais alguma árvore mas, às dez e meia, disse-lhe que tínhamos mesmo de voltar.

Claro que não havia tempo de ir ao Hotel. No regresso o Professor estava feliz e e ia-me falando das maiores árvores da Europa (sequóias e eucaliptos), ali em Vale de Canas, mesmo assim bem mais pequenas do que as existentes no continente Americano.

Chegados já com atraso ao Instituto de Química Fisiológica, o Professor tirou a capa e começou a procurar em todos os bolsos. “Pedroso dei a você o escrito da minha lição?” Não Professor, não me deu nada. “Ficou lá para alimento das árvores, paciência e avançou para o anfiteatro”.

Um Professor Chagas com lama até meio das calças, com a sua figura elegante e simpática, entrou na sala repleta de pessoas.

Lá explicou brevemente donde vinha e porque tinha tanta lama e, a seguir, deu uma lição que eu considero das mais maravilhosas que ouvi em toda a minha vida!

Que enorme privilégio foi conhecer e conviver com o Prof. Carlos Chagas!

Mas, antes da lição sobre ciência, estava a outra, aquela de uma pessoa do outro lado do oceano nos vir falar das árvores que temos aqui, a quatro ou cinco quilómetros, que são raridades reconhecidas em todo o mundo e que nós mal conhecemos.

Aliás, Vale de Canas continua a ser uma relíquia desprezada.

Recentemente, tentei encontrar ligações da Universidade de Coimbra a Vale de Canas, não encontrei…

Sinto que também sou culpado…

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