Opinião – “O Estudante de Coimbra” – renascido para a modernidade

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João Boavida

A obra O Estudante de Coimbra, de Guilherme Centazzi é muito interessante em termos históricos. Não um histórico de manual mas pelo relato de acontecimentos vividos, ou ouvidos, enfim, conhecidos, o que o afasta de um romance histórico propriamente dito. Sem gastar muito tempo com os acontecimentos históricos, (embora à medida que o enrede se desenrola esta vertente se vá acentuando) utiliza-os com a medida necessária para situar as peripécias da sua narrativa, trazendo até nós factos de todo esquecidos mas que foram, muitos deles, determinantes, conseguindo dar-nos a ambiência geral e o sentir dos tempos. Ocorrências dramáticas para os que as viveram, e como é disso que se faz a matéria dos romances, e como é isso que permite compreender um conflito e uma época tão atribulada, o romance acaba por ser um quadro complexo, agitado, colorido, mas muito doloroso do Portugal oitocentista.

Trata-se, porém, de um romance e, como tal, mesmo reproduzindo ou referenciando situações reais, não perde a dimensão ficcional delas, facto determinante em termos literários. Sem pretender fazer história, acabou por retratar uma época como poucos terão conseguido, e parecendo não ter grandes pretensões literárias, («… nem destino a minha vida a escrever obras de literatura», diz ele na “advertência ao público”) acaba por produzir boa literatura, pelo estilo solto e irreverente do enredo onde o seu «fim principal [é] combinar o nosso resumo histórico destes últimos anos, com tais factos imaginários» (a matéria romanesca). E onde o autor entra com frequência a fazer considerações morais, ou jocosas, à moda dos românticos, mas numa espécie de duplo, pois o romance é relatado na primeira pessoa. Mas donde o opinador é posto fora, sem cerimónias, quando o autor reconhece que está a exagerar, retomando a narrativa, e passando-a para um «senhor Estudante», que é ele, Centazzi. Mas sem corresponder, por aí além, com a biografia – ele próprio diz não pretender escrever a sua vida – criando em relação a isso as suas distâncias. E com episódios e situações tão depressa dramáticos como cómicos e com caracterizações umas vezes sintéticas e caricaturais, mesmo mordazes, outras descritivas e mais compreensivas, cheias de humanidade ou de indignação face às indignidades; apontadas aos outros mas também a si próprio. As sequências de episódios são em geral rápidas, embora entrelaçadas e com uma linguagem algo cinematográfica, o que lhes dá um tom literário particular e vivo, despretensioso mas não descuidado nem rudimentar.

Apesar das tiradas moralista (quase sempre a propósito, e por vezes amaciadas por um tom jocoso e crítico) o livro é fluente, através de uma maleabilidade sintática e lexical elegante e envolvente. Quase sempre segura, sem presunção, e leve, sem ser frívola, é dum realismo que, em certas passagens, vai ao olho do furacão com grande rigor descritivo ou mediante sínteses acutilantes e oportunas.

Finalmente, Centazzi não resiste a um humor vivo de tiradas inesperadas e a descrições por vezes hilariantes, sem lhe faltarem observações acertadíssimas não só sobre nós, portugueses, mas também sobre ingleses, espanhóis, franceses e outros figurões da cena internacional da época, o que acrescente o interesse do livro. Faz ainda análises: sobre Portugal e os portugueses, os governantes do seu tempo, as decisões e os decisores políticos, os gastos públicos, os oportunistas e os vigaristas – que o poder não os consegue meter na ordem, ou que ascendem ao poder para obterem impunidade – com o que faz um bom retrato do seu tempo. E, em boa media, também do nosso.

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