“A cidade de Coimbra tem que se mobilizar à volta da (sua) Misericórdia”

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Com as valências de creche, lar, centro de dia e apoio domiciliário e um colégio para jovens que lhe são entregues pelo Tribunal de Menores, a Santa Casa da Misericórdia de Coimbra desafia a cidade a apoiar a (sua) Misericórdia para continuar a poder contar com uma porta aberta em tempos de necessidade

As misericórdias nasceram para ajudar os que mais precisam. Este ainda é o lema da instituição, hoje?

Sem dúvida. E um lema que provavelmente se vai manter ao longo dos anos e dos séculos. Provavelmente, continuará a haver os mais e os menos necessitados. E esta casa dirige-se aos mais necessitados.

De que forma é que a Misericórdia ajuda esses cidadãos?

A Misericórdia mantém, aos 512 anos, três valências ativas. O CATI – Centro de Apoio à Terceira Idade que funciona em São Martinho do Bispo. Ali estão pessoas, umas internadas, outras em sistema de centro de dia e outras ainda que recebem apoio em casa, designadamente, de alimentação.

Quantas pessoas são acompanhadas no CATI?

Neste momento, rondam os 85 utentes. O centro tem uma capacidade em regime de lar para 90 pessoas, sendo o apoio domiciliário,de 40, mas temos sempre muito mais pedidos. O centro de dia dá para 20 pessoas e estarão 18. Uma outra valência é o Colégio de São Caetano, antes conhecido como o Colégio dos Orfãos. Hoje, os rapazes e raparigas são enviados pelo Tribunal de Menores. Temos capacidade para 30 jovens e está praticamente completa. São jovens com problemas vários, ao nível da aprendizagem, do comportamento e do mau relacionamento social. A terceira valência, a creche Margarida Brandão, foi criada há apenas dois anos. O edifício permite ter 52 crianças entre os três meses e os três anos.

Que apoios tem a Misericórdia para assegurar as três valências?

No caso do CATI, uma pequena percentagem, que nalguns casos, pode chegar a um terço, é assegurada pelos utentes, um terço pela segurança social e um outro terço pela Santa Casa. A despesa com cada utente ronda os 900 euros, o que não é fácil. Principalmente, quando todos sabemos os valores das reformas dos nossos idosos e que muitos deles ainda têm que ajudar os filhos.

E qual tem sido a resposta da cidade?

Demasiado curta. A cidade de Coimbra tem que se mobilizar à volta desta casa no sentido de viabilizar as respostas que aqui damos. A Misericórdia não é uma casa rica e quer continuar a existir enquanto resposta social. A cidade de Coimbra tem que apoiar a sua Misericórdia. Caso contrário, um dia destes poderá não ter uma porta onde bater.

Estamos a falar de uma santa casa rica?

É rica de património, mas não é rica de disponibilidades. E grande parte desse património está nesta parte alta da cidade. São casas antigas que ou não rendem ou rendem pouco. Para fazer face a todos os compromissos assumidos, a santa casa necessita que lhe sejam feitas doações, mas de coisas que possam ter rentabilização. Por outro lado, tem que estar sempre muito ligada à segurança social e às capacidades dos indivíduos que são acolhidos.

A situação que o país vive tem influência na sobrevivência destas instituições?

Sem dúvida. Tem influência nas pessoas e nas famílias, na própria segurança social que neste momento dispõe de menos recursos e, por último, na própria santa casa. É necessário manter um equilíbrio que evite entrar em despesas sumptuárias ou supérfluas.

E como se pode fazer uma gestão financeira, quando o que entra é pouco e as necessidades são tantas?

Nós neste momento, felizmente, ainda só temos lista de espera na creche. No CATI e no Colégio de São Caetano ainda não estamos com as nossas capacidades em pleno. Lamentavelmente, temos sobre nós este peso de sabermos que a segurança social está com grandes dificuldades. Se do terço que lhe cabe, a segurança social falhasse nós ficaríamos numa situação, em certos casos, intransponível.

O Colégio de São Caetano também é subsidiado pela Segurança Social?

Também, e é o que nos vale. Até porque neste caso, não contamos com a comparticipação das famílias. O que já não acontece no caso da creche pois, havendo lista de espera, podemos sempre gerir com base na possibilidade de pagamento, sem nunca perder de vista a nossa preocupação de ordem social.

A Misericórdia já é confrontada com pedidos de ajuda de famílias em situação difícil?

Já nos batem à porta a pedir ajuda ainda que esporadicamente. Por exemplo, ao nível da alimentação. Como temos as cozinhas no CATI, conseguimos reunir alguns cabazes de vez em quando e entregar a essas famílias. Por outro lado, e porque ao fim de semana, as pessoas aqui da zona da Sé Velha que são apoiados por outras instituições, como por exemplo o centro paroquial, têm problemas, confecionamos as refeições que são distribuídas por uma equipa de voluntários. E já são em número bastante significativo.

As misericórdias foram sempre ligadas à Igreja. Essa ligação ainda se mantém?

Continua a haver uma ligação formal. Temos autonomia financeira, administrativa e de funcionamento, mas temos como regra submeter anualmente, o nosso plano à hierarquia, neste caso, ao bispo da diocese. Também porque ele está sintonizado com a ação da santa casa.

E os políticos? Também estão sintonizados com a ação da Santa Casa?

Bom…! Temos muito boas relações com a câmara, quer pessoais, quer institucionais. Mas quanto à capacidade de resposta dos políticos em relação às ansiedades e às necessidades da Santa Casa da Misericórdia, terei que reconhecer que não há sensibilidade. Tudo o que diz respeito à Misericórdia tem resposta muito lenta e sempre muito difícil. Em relação ao Ministério da Segurança Social, temos um problema que já se arrasta há anos, que é urgente resolver e que foi exposto ao ministro da Segurança social em Janeiro aquando da sua visita. Trata-se do edifício do CATI onde já fizemos mais de 500 mil euros de investimento, nos últimos dois anos, para não o deixar cair e garantir boas condições. E o ministério nunca pagou nada. O ministro entendeu a situação e disse que a ia analisar. Mas o que é certo é que já estamos no fim de setembro e nada. A burocracia em Portugal é terrível.

Em altura de crise… a preservação do património da santa casa é uma prioridade?

A preocupação com o património é muito grande e continua a ser uma prioridade para nós. Mas como sabemos que não o podemos fazer sozinhos temos tentado participar em todas as execuções de ordem prática ao nível da alta da cidade. Acabámos, por exemplo, de assinar este acordo com o RUAS que engloba a reabilitação da Universidade, da Alta e da Sofia. É claro que relativamente àquelas pequenas obras de manutenção dos pequenos edifícios que são habitados, nós vamos suportando sempre com a ideia de que as rendas possam cobrir um pouco desse investimento. Mas quando se atingem dimensões maiores, torna-se mais complicado.

O edifício da Faculdade de Psicologia, por exemplo?

É um bom exemplo. Se tivéssemos que ser nós a fazer a manutenção daquele edifício seria praticamente, para não dizer, totalmente impossível para nós.

O que pode representar a candidatura a património da humanidade?

Por um lado, nós, enquanto Misericórdia, não sermos excluídos enquanto integrados no centro histórico. Mas, também, o que eu já transmiti ao presidente da câmara na presença dos responsáveis do gabinete do centro histórico, a hipótese de não virmos a ser nunca confrontados com factos consumados. Por exemplo, neste momento, há um projeto do centro histórico para uma modificação muitíssimo grande na fachada do museu e da igreja da Misericórdia que prejudica esteticamente falando, todo o conjunto. É evidente que tivemos que manifestar a nossa discordância em relação ao projeto e sensibilizámos os responsáveis para a necessidade de sermos ouvidos pelo menos naquilo que é propriedade da Misericórdia. Nós temos lutado para obter alguma verba que permita fazer a melhoria do museu e, sobretudo, a recuperação da igreja que neste momento se encontra praticamente fechada para evitar derrocadas. Mas não tem sido nada fácil.

Costuma dizer que tão importante como matar a fome é alimentar o espírito. Como é que isso se faz numa altura em que muitas famílias já não têm para comer?

É muito complicado. Nós temos inspiração cristã. E está na Bíblia que ricos e pobres sempre os haverá, o que é chocante, sem dúvida. Mas a nossa missão é lutar para que os pobres sejam menos pobres. Quanto à parte espiritual, penso que a nossa ação tem sido positiva, pois temos tido a recetividade das pessoas que trabalham nas nossas valências. As pessoas têm tido sensibilidade para apoiar os utentes tanto no aspeto material, como espiritual. A tal palavra amiga que é indispensável. Fico muito satisfeito quando vou ao CATI e vejo pessoas com mais de 80 anos, felizes e bem dispostos. É sinal de que são bem tratados e que gostam das pessoas que lidam com elas.

No Colégio de S. Caetano é mais difícil ver-se essa satisfação?

É um meio mais difícil, sem dúvida. E por isso é que temos que ter docentes da área educativa e da área psicológica. Mas sente-se que há respeito e que os jovens conseguem acatar, relativamente bem, as regras e a opinião desses profissionais. Nas duas valências, é preciso que haja, para além da boa capacidade técnica, uma grande capacidade humanista.

A Misericórdia de Coimbra não tem nenhuma unidade ligada à saúde?

Felizmente. Naturalmente que sendo Coimbra uma cidade maior do que as outras cidades aqui à volta, essas que têm hospital debatem-se, hoje, com um problema muto sério. As últimas notícias apontam a vontade do Governo em impingir cinco dessas unidades para as misericórdias. Teve que vir o nosso presidente da união das Misericórdias dizer que essas situações teriam que ser pensadas caso a caso e que só serão aceites aquelas que fiquem em condições de prestar dignamente uma boa ação aos utentes. É muito complicado, em particular, porque não há dinheiro e porque a medicina está muito cara.

E como vê a recuperação?

Muito difícil. Em primeiro lugar acho que as pessoas têm que cair na real e têm que compreender que, como nas nossas casas, só podemos gastar até aquilo que temos. Depois temos que perguntar, não aos economistas porque já está demonstrado que eles não são capazes, como se consegue fomentar a economia num período de austeridade como o que vivemos. Até agora não vi nenhum economista capaz de dizer qual é a solução. Dizer mal é fácil. Mas como se pode fazer bem?

E quanto à Misericórdia? Dificuldade é sinal de ausência de projetos?

Não pode ser. Os projetos fazem parte das instituições e das pessoas. E por isso, para além dos projetos que envolvem o património, gostaríamos de avançar com um campus social. Uma obra pensada para a zona de Banhos Secos com que se pretende criar respostas para os jovens e para os seniores que necessitam desta grande casa.

O que o levou a aceitar o desafio de ser provedor da Santa Casa?

Eu estava aposentado desde 2006. Com a nossa formação cristã temos a ideia de que nem só de pão vive o homem, mas que também é essencial. E se nós temos pão também temos que arranjar maneira de ter pão para os outros e, ao mesmo tempo, garantir um acompanhamento espiritual. E quando fala em espiritual, não me refiro ao religioso, mas à capacidade de transmitir alegria aos outros. Foi um pouco por imperativo de consciência. Estes lugares não são apetecíveis, mas alguém tem que os assumir.

Sentiu algum peso ao substituir o professor Aníbal Pinto de Castro?

Absolutamente nada. A casa estava organizada. Conhecia o professor Aníbal há muitos anos e de quem era amigo. Era uma pessoa muito dedicada e polivalente que estava aqui na Misericórdia, no Asilo da Infância e na Confraria da Rainha Santa, o que é extraordinário. Quem vem a seguir tem que dar continuidade. Essa é a responsabilidade de todos.

Como vê o papel de Coimbra no país?

Eu sou um bocado suspeito porque nasci, doutorei-me e fiz toda a minha carreira profissional em Coimbra, embora tenha tido muitas saídas ao estrangeiro. Um facto de ser um coimbrinha nato não quer dizer que eu não tenha uma perspetiva relativamente racional e realista de Coimbra. É importante reconhecer que Coimbra já teve uma fase de uma grande importância que, lamentavelmente, foi perdendo. Era Coimbra que lançava pessoas de grande categoria, em várias áreas e que governavam o país ou que, pelo menos, conseguiam que ele andasse para a frente. Agora, esse poder desvaneceu-se de uma maneira extraordinária. É até impressionante que, neste momento, a importância até política de Coimbra, seja tão reduzida.

Mas por culpa de Coimbra?

Também muito por culpa de Coimbra, claro. Eu gostaria de ver Coimbra com outra projeção, outro dinamismo, com mais peso político, mais capacidade financeira e mais investimento económico, que lhe desse uma projeção que neste momento não tem. Quando viajamos na A1 deparamo-nos com uma placa que anuncia a cidade do conhecimento. Ora o conhecimento está em toda a parte e não só em Coimbra. Nós precisamos de uma cidade mais pujante, mais interventiva.

E como conseguir?

Vamos ter dificuldade em conseguir porque estamos a deixar ir embora os jovens talentos que se estão a formar na nossa cidade e no nosso país. Não é com os aposentados, do meu tempo, que vamos resolver o problema. E houve muitos que fizeram coisas brilhantes. Mas são os nossos filhos e depois os nossos netos, que podem resolver o problema de Coimbra e do país. E podem até nem ir para melhor. Mas aqui eles não têm esperança.

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