Norberto Pires
Caro Ricardo Castanheira, pensei um bocado antes de intervir sobre “O Mito”. Acho muito relevante um debate sobre o SNS. Não porque seja um mito, ou algo que é muito diferente do que se prometeu, mas porque o SNS é uma das melhores coisas que fizemos no Portugal democrático.
Falhar no SNS é um pouco bater em retirada. Sendo prático e pragmático. O SNS está a falhar porque os sucessivos governos deixaram de lhe prestar atenção. Era algo de intocável, uma vaca sagrada da democracia, que nunca podia ser reformada. Mexer no SNS era imediatamente precedido de uma retórica, normalmente associada a partidos de esquerda, que impedia que os seus problemas fossem resolvidos. O resultado foi o que se viu: cresceu a despesa, cresceu a ineficiência, cresceu a infraestrutura, e tudo se tornou incomportável. E, portanto, o SNS passou de uma excelente ideia e de um serviço inovador, a um enorme problema sem solução dada a impossibilidade sequer de o reformar. Daí até ao mito é um passo de formiga.
Eu tenho muitas coisas boas a dizer do SNS. Sempre que recorri a ele tive boas respostas. Temos ambos filhos pequenos e eles têm essa irritante tendência de “arranjar” sarilhos. Sempre que recorri ao pediátrico de Coimbra, o melhor hospital do mundo (não tenho dúvida do que digo), fui exemplarmente atendido. Considero que o Centro de Saúde que frequento (USF Briosa do Centro de Saúde Norton de Matos em Coimbra) é um exemplo para qualquer lugar do mundo (e já vivi em muitos de 1.º mundo). Mas sei que essa não é a realidade pelo país fora e temos de reconhecer que o SNS está a falhar. Precisa de reforma urgente. Porque nem todos podem pagar 7 vezes mais para terem os seus filhos ou familiares atendidos.
É preciso que se termine com o abuso de todo o tipo. É preciso que se termine com o desperdício. É preciso que seja racionalizado. É preciso que seja um serviço, e por isso, se conheça com exatidão onde estão os custos, qual a sua racionalidade, quais são os recursos e como podemos fazer isto de forma mais eficiente. No SNS é tudo muito obscuro. Reformar significa perceber bem quais os recursos, quais a necessidades e onde podemos fazer melhorias.
A isso chama-se partir a espinha dorsal aos vícios instalados e que usam a nossa solidariedade para se manterem a sugar recursos nacionais, e manter um serviço que é essencial a um país livre, democrático e solidário. E ter a coragem de dizer a todos, depois de termos bem identificados os problemas e se terem resolvido as dificuldades, que provavelmente teremos de financiar o SNS de outra forma. Mantendo a seu carácter tendencialmente gratuito, mas aplicando taxas moderadoras conforme o rendimento per capita do agregado familiar. Se calhar uns pagariam uma taxa moderadora 2 ou 3 vezes maior, outros talvez ainda mais, mas a maioria pagaria a taxa base, ou até nada. O que interessa Ricardo é que não sejamos algo hipócritas. Eu também confesso que quando venho para o Algarve de férias tenho o coração nas mãos. Sei que se tiver uma chatice não posso contar com grande parte dos hospitais públicos. Pelo que identifiquei um ou dois privados para o caso de ter um problema com os filhos ou restante família. Mas isso é hipocrisia. É fazer de conta e deixar andar.
É necessário criar a consciência de que precisamos de olhar para o SNS e reformá-lo. O problema talvez seja a falta de confiança que todos desenvolvemos pelos agentes políticos: não acreditamos na sua honestidade, no seu desinteresse, na sua capacidade de trabalhar para a causa comum, na sua capacidade de dar o seu melhor quando em funções públicas, na sua capacidade de defender de forma intransigente o interesse público, na sua capacidade de resistir e serem elementos de mudança.
Foram 38 anos de desilusões, cheias de maus exemplos, que, paulatinamente, transformaram o sonho dessa manhã de Abril em algo que, subitamente, nos parece um mito. Mais do que nunca é altura de intervir e deixar de ter medo.