Opinião – Chamava-se Samia

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Francisco Queirós

portugueses espalhados pelo mundo. É assim há séculos. A nossa história foi marcada pela emigração. O século XX, sobretudo. Os anos finais do regime fascista caracterizaram-se pelo êxodo a salto para terras de França, da Alemanha e outras.

Nos tempos mais próximos, destinos como Espanha, Suíça ou Inglaterra tornaram-se vulgares. Ainda assim, ninguém esperaria que a sina de um povo pobre se transformasse na panaceia prescrita pelos seus governantes, receituário especialmente destinado aos mais capacitados em termos de formação e à faixa etária mais útil em termos de força de trabalho!

Enfim! Já se adjectivou esta bestialidade de mil formas! Factual é. Jovens qualificados abandonam o país, enquanto as gerações dos seus pais fazem de novo a mala para, como há décadas, deitarem a mão a qualquer coisa que lhes valha, já que na sua terra não há o que valha para a organização de uma vida condigna. O sonho de vidas melhores, procurado em terras distantes, tem séculos. Mas não é uma sina colectiva, um mal endémico e atávico para sempre. Os governantes, cujo principal dever é construir um país de futuro cá dentro, douram o drama, enfeitando-o de virtudes. Como se emigrar para sobreviver fosse o mesmo que viajar pelo mundo ou sujeitar-se a trabalhos e bolandas longe da família e dos amigos fosse o mesmo que fazer turismo.

O drama da emigração não é um mal português. Os pobres do sul tentam chegar a terras mais ricas a norte. O Mediterrâneo tem sido nos últimos anos a passagem para o sonho de uma vida melhor e o túmulo de milhares de esperançados. Em praias do sul de França, de Espanha ou da Itália não descansam só corpos de turistas a banhos de sol e de mar. Há corpos que dão à costa, transportados por ondas e marés que não os levaram para os sonhos felizes de vidas melhores, mas os mergulharam de vez, sem futuro.

Samia era uma atleta olímpica. A menina somali tinha apenas 17 anos quando em Pequim correu os 200 metros. Foi a última, a dez segundos da penúltima. Mas a determinação de uma menina muçulmana bonita que desafiava tradições e tabus, ou lá o que se queira chamar às formas de dominação e humilhação da metade fêmea da humanidade, foi ovacionada de pé. Foi em Pequim, em 2008. O público do mundo inteiro vibrou. O que terão pensado naquele momento as mulheres da Somália, as mulheres de várias crenças ou sem crenças, as que querem ou não querem, as que são chamadas a crer e a querer ou a nada disso simplesmente?

Samia era uma menina de 17 anos. Além de atletismo, praticava natação. Morreu afogada há dias quando navegava numa balsa com rumo a Itália. A atleta olímpica partira da Líbia e procurava uma vida melhor. A mãe, vendedora de frutas, vendera um pequeno terreno para pagar a passagem clandestina. Ilegal! Samia, uma jovem de 21 anos, a mais velha de seis irmãos, atleta olímpica, morreu afogada sem cumprir os sonhos que tinha.

Milhões de jovens sonham em todo o mundo. Uns morrem afogados, outros talvez não precisem de se deitar ao mar numa embarcação improvisada, podem não ter certificados de presença em jogos olímpicos, até terão muitos diplomas de cursos que de facto frequentaram, o destino que lhes querem reservar é de novo e ainda o de navegar.

Navegar é preciso! Sempre e quando se quiser! Mas não se pode atirar um povo inteiro ao mar!

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