“Podíamos fazer melhor se o Estado pagasse aquilo que contrata connosco”

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Foto Luís Carregã

No livro que lançou na semana passada, Fernando Regateiro grava a memória de quatro anos de gestão dos HUC, durante os quais a unidade hospitalar adotou o estatuto de EPE e integrou o CHUC

Como surgiu a ideia de escrever este livro, que intitulou “HUC – 4 anos de gestão e o futuro”?

A ideia surgiu ainda durante 2010, com a intenção de deixar registada a memória de um trabalho feito, à semelhança do que já tinha sido feito por outros dirigentes dos HUC. Esta gestão teve o privilégio de fazer a passagem dos HUC do setor público administrativo (SPA) para o setor empresarial do Estado, para o estatuto de entidade pública empresarial (EPE). O que sendo apenas um instrumento, não deixa de ser uma evolução culturalmente muito relevante. Por outro lado, havia que registar outras experiências que tivemos que viver para acompanhar e sustentar o futuro do hospital, como a criação do nível de gestão intermédia, com o objetivo de aproximar a gestão dos profissionais, descentralizando, dando autonomia, responsabilizando, orçamentando setorialmente. E isso também merecia ser retratado, porque não havia nos HUC uma gestão intermédia, mas apenas departamental, que só abarcava um terço dos serviços e como estava organizada era apenas uma gestão técnica e não da administração. Por isso a gestão intermédia foi uma inovação, trouxe ganhos de eficiência e ajudou a preparar a sustentabilidade do hospital.

Enquanto foi presidente do conselho de administração dos HUC, entre maio de 2007 e novembro de 2011, os HUC passaram a EPE e integraram o CHUC…

Sim, estive desde 2008 na génese da fusão dos hospitais. Percebi que o futuro da saúde em Coimbra passava pela fusão dos hospitais e terminado este ciclo viria a fusão. Também é uma memória do que foram os últimos anos dos HUC, sendo que eles são seculares.

Temeu-se a mudança dos HUC para o estatuto de hospital EPE. Que balanço faz dessa transição?

O balanço é francamente positivo. Não se entende que num país como Portugal, em que todos os hospitais universitários do país já tinham o estatuto de EPE, tal como os hospitais mais pequenos, quisessem que os HUC continuassem orgulhosamente sós, desprezando as vantagens de ser EPE. Em 2007 e 2008, estava o hospital ainda no setor público administrativo, preparámos o reforço de financiamento em 85,5 milhões de euros, assegurando um patamar de sustentabilidade antes da passagem a EPE. E sem isso não seria possível gerir o hospital para que se mantivesse com os níveis que sempre teve.

Mas o balanço dos hospitais EPE não tem sido brilhante…

Só posso falar do tempo que estive nos HUC. Para além do reforço do financiamento, houve depois uma gestão que permitiu a sustentabilidade económica. Em 2009, 2010 e 2011, os resultados consolidados foram economicamente positivos e não fizemos défices. Sei, até pela comunicação social, que há hospitais EPE que têm centenas de milhões de euros de défice – e não compreendo isso à luz da capacidade de gestão que é possível fazer nos hospitais EPE. E os HUC, sem nunca negarem qualquer tratamento, tendo acesso a tudo o que de mais moderno e mais contemporâneo existia, reequipando-se de uma forma muito profunda, investindo de forma muito intensa, tiveram resultados económicos positivos, de umas centenas de milhares de euros. Uma das acusações que me faziam, quando fui nomeado para presidir aos HUC, é que ia transformar o hospital num hospital distrital. O resultado está aí: a diferenciação e o prestígio continuaram a aumentar.

Foi necessário fazer alterações?

Há aspetos que acautelamos. Por exemplo, não entrando na competição por médicos, não pagando acima de uma tabela estabelecida, negociando com os fornecedores de produtos farmacêuticos atempadamente, gerindo rigorosamente o mapa de pessoal. No final de 2010 tínhamos menos 204 profissionais. Mas transformamos a quase totalidade dos vínculos de trabalho precários que existiam em contratos individuais de trabalho sem termo. Também reduzimos 170 camas, de acordo com o Plano de Desenvolvimento Estratégico dos HUC, e isso não afetou minimamente os doentes, porque as camas foram reduzidas onde não eram precisas. Houve casos que, mesmo com a redução, as camas continuaram com sub-ocupação.

No fundo, um trabalho de gestão apertado?

Foi necessária uma gestão cuidadosa do pessoal, uma gestão rigorosa dos recursos, planear, programar e comprar de acordo com as possibilidades, com uma negociação muito séria. Tivemos sempre esse cuidado; outros hospitais não o tiveram, não acautelando os interesses económicos e a sustentabilidade. Neste período crescemos razoavelmente em termos de consumos, o que é necessário para os doentes, mas estes aumentos foram muitíssimo baixos. Mas fazendo esta gestão conseguimos boas contas, porque em quatro anos de gestão o aumento global dos custos do hospital foi só de 4,3 por cento, ou seja, cerca de um por cento ao ano. Em 2010 crescemos negativamente, – 0,35%, e contudo na transição de estatuto SAP para EPE aumentaram os encargos sociais com a função pública. O nosso cuidado foi baixar os custos com o pessoal, para conseguir incrementar a atividade assistencial.

O que destaca na área assistencial?

Na área assistencial privilegiamos o ambulatório versus o internamento. Aumentamos as consultas externas de praticamente meio milhão (498 mil) em 2007 para 528 mil em 2010. Realizamos mais sessões em hospital de dia, passando de 34.300 em 2007 para 41.400 em 2010. As cirurgias em ambulatório aumentaram de 22,6% para 30,6%, no mesmo período. Em paralelo reduzimos os internamentos, de 48 mil para 45.300 e aumentamos a taxa de ocupação de 71 por cento para 76 cento, reduzindo 170 camas.

Neste trabalho, quais são os principais obstáculos?

Poderíamos fazer melhor se o próprio Estado pagasse aquilo que contrata connosco. Mas paga com muito atraso. A 30 de setembro de 2011 tínhamos dívidas a fornecedores de 102 milhões de euros, e tínhamos créditos, de contratos-programa, da ADSE, da ARS e de outros hospitais, de 130,5 milhões de euros. O que significa que se os pagamentos fossem feitos a tempo, pagávamos tudo e ficávamos com um superavit de 28 milhões de euros, para negociar pagamentos a pronto, comprar muito mais barato. Depois ouvimos o Governo dizer que os hospitais mantêm uma demora muito grande no pagamento aos fornecedores, a exigir que paguemos a 60 ou 90 dias, com a ameaça de sermos penalizados com juros, quando é o próprio Estado que não assume os seus compromissos. Sendo assim, não pode pôr o ónus nos administradores hospitalares. O problema está aí: essas centenas e centenas de milhões de euros que devem às entidades públicas empresariais deviam ser repostas e depois exigir uma gestão cuidadosa e não permitir défices. E aí sim, quem não cumprir deve ser penalizado. Os HUC tinham uma demora média 320 dias no pagamento aos fornecedores em 30 setembro de 2011, porque não tínhamos capacidade financeira para pagar, embora tivéssemos boas capacidades económicas.

E houve espaço para investimento?

Nestes quatro anos, entre 2007 e 2010, o investimento foi de 27,5 milhões de euros, ou seja, aumentou 87%. Fizemos várias intervenções no âmbito do Hospital Amigo do Ambiente. Neste projeto, toda a programação foi feita para termos uma poupança aproximada de um milhão de euros por ano. Para além dos ganhos ambientais, em termos ecológicos, de poupança de energia e hídrica, eficiência energética e qualidade do ar. O investimento total neste projeto é de 8,5 milhões, dos quais 5,5 milhões são financiados. E foram feitos vários investimentos, como a criação do novo serviço de oncologia, da unidade de cuidados cirúrgicos intermédios, através da fusão de três unidades, da unidade de cirurgia de ambulatório, concentrámos hospitais de dia, criámos uma segunda sala de hemodinâmica, em cardiologia, entre outros projetos. E apostámos na formação. Cerca de 300 médicos fizeram formação em suporte avançado de vida. Na formação profissional, em 2007, houve 26 cursos, para 389 profissionais, e em 2010 realizaram-se 170, para 2850 profissionais.

Sempre foi defensor do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC)?

Em 2008, quando foi preparado o regulamento interno do hospital, uma das primeiras frases, inscritas na parte da “visão de futuro”, dizia que os se deviam constituir “como pólo aglutinador de um centro hospitalar universitário em Coimbra. Desde 2008 que batalho por isso, e se alguém é responsável por desenvolver esta ideia, por a sustentar, por a defender acerrimamente contra ventos e marés, foi a minha pessoa. Em outubro de 2010 já estava praticamente tudo assente, com mais ou menos concordância, depois de reuniões no gabinete ministerial com os presidentes do conselho de administração das várias unidades hospitalares. A ideia era que o decreto-lei fosse publicado em finais de 2010 e o centro hospitalar entrasse em funcionamento no início de 2011, mas houve um atraso.

A fusão entre os Hospitais da Universidade de Coimbra e o Centro Hospitalar de Coimbra (CHC) era necessária?

Para mim é claro que uma oferta sustentada de saúde em Coimbra só pode fazer-se se usarmos bem os recursos financeiros que nos são alocados, concentrando recursos materiais e humanos existentes e conhecimento. Porque é isso que vai aumentar a oferta e vai aumentar o potencial. O CHUC sustenta a capitalidade da saúde em Coimbra e é a resposta a essa necessidade. Até porque Coimbra depende em grande parte da saúde para se sustentar na sua capitalidade e na sua economia. Portanto, uma visão estratégica do futuro de Coimbra passa obrigatoriamente pela concentração dos recursos humanos e materiais da saúde, pela fusão da oferta em saúde e nunca pela redundância existente.

Havia de facto redundâncias na oferta de saúde na cidade?

Sim, a oferta só se ia degradar e oferta degradada é oferta rejeitada. E liberta espaço para que outros ocupem essa oferta, e há cidades à volta de Coimbra que querem ocupar esse espaço. Devemos abrir os olhos e compreender que grande parte da sustentabilidade económica e da capitalidade de Coimbra está na saúde, e organizarmo-nos para fazer valer os nossos recursos e fazermos mais com o que temos – e cada vez vamos ter menos –, evitando redundâncias, e oferecendo qualidade e diferença. Quem desejar um bom futuro para Coimbra tem que perceber isto, que não vale a pena defender modelos antigos, que tiveram o seu tempo.

 

Acha que a criação do CHUC vai ter sucesso?

Estou convencido que sim. Mas não vai ser um processo fácil, sobretudo porque mexe com interesses diversos; não são só interesses materiais, de posição, mas também culturais, adquiridos, de status quo mental, cultural. Para ganhar o futuro para Coimbra é preciso ver onde estão as oportunidades. O país não passa sem Coimbra enquanto a cidade fizer a diferença; quando deixar de fazer a diferença passa bem sem ela, porque outros vão oferecer essa diferença. Há quem se queixe que em Lisboa não gostam de Coimbra, mas os culpados são os cidadãos de Coimbra, que não podem estar à espera que outros façam por eles, há outros a criar alternativas. Havia redundâncias múltiplas que agora terão que ser limadas e confio que a atual administração e os poderes instalados da cidade percebam o que devem fazer e o façam em tempo útil, porque também há janelas de oportunidade, depois é tarde.

Há alguma memória especial que recorde destes quatro anos?

Na generalidade, tenho memórias gratificantes, até porque tenho memória seletiva e deixo de lado as outras. Mas há uma que me entusiasma, que é a vinculação e a motivação dos profissionais do HUC. Foi com eles que fez o que se fez, e por isso presto-lhes a minha homenagem. E é com eles que se vai fazer o futuro do CHUC, e eles fazem-no bem. Por isso não admito a ninguém que fale mal da função pública, há gente boa em todo o lado. Precisam é de uma liderança com deveres e limites, seriedade, transparência, equidade e responsabilidade e a especificidade da função hospitalar, porque um hospital trata doentes.

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