Paciência, Wilberforce!

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Salvador Massano Cardoso

Não me recordo, apesar de fazer muitos esforços, quando é que comecei a pronunciar certas palavras, provavelmente por as dizer sem saber o que dizia. Balbuciamos, soletramos, interagimos através de palavras, fonemas e monossílabos sem saber o significado dos mesmos. Depois, com o tempo, acabamos por preencher o oco dessas palavras com algum sentido ou significado, um recheio grosseiro, e muito limitado, que, periodicamente, é substituído por conceitos mais elaborados e consistentes.

Não me lembro quando é que comecei a utilizar a palavra Deus, mas sou capaz de precisar alguns conceitos a esse propósito. Diziam-me que estava no céu. Olhava para o céu e não percebia como é que alguém podia estar lá em cima. Metia-me muita confusão, mas uma estampa, que estava na sala, ajudou-me a resolver o assunto. Uma imagem de um homem barbudo sentado sem usar banco, em cima das nuvens, dava a impressão de que estava para lá do teto azul. Foi então que entendi o que era o céu e onde estava Deus. O azul era a cor do teto e por cima, qual forro, estava a casa de Deus, onde morava, e assim percebi como é que ele via tudo; lá em cima podia ver com facilidade o que é que se passava cá em baixo. Desta forma consegui encontrar uma explicação. Depois, esta interpretação e muitas outras construídas ao redor do imaginário infantil – o que eram as “almas”, onde ficava o purgatório e como muito facilmente se ia para o inferno, além de algum terror religioso que perturbava o meu sossego e transformava sonhos em pesadelos horríveis -, alimentadas e ensinadas “superiormente” por adultos, a quem devíamos respeito e obediência, começaram a cair umas atrás de outras sem fazer grande esforço. Bastava para o efeito pensar, não muito, apenas um pouco. No entanto, acabei por compreender, ou melhor, respeitar quem aceitava ou se deixava conduzir por essas normas e condutas. Não tenho nada que meter o “bico” na esfera da fé de quem quer que seja, embora não deixe de ter as minhas opiniões, mas devo ser tolerante e respeitador dos direitos dos outros. O que me mete mais confusão é quando tentam colocar a religião, seja ela qual for, em pé de igualdade com a ciência e procurar falar de igual para igual, sobretudo na explicação de determinados fenómenos. Um deles tem a ver com a criação da vida, mais propriamente do homem. Quando comecei a compreender a teoria da evolução acabei por conhecer muitas passagens relevantes de todo o historial e das mudanças operadas na forma de ver as nossas origens. Antes de saber o que era o darwinismo, aos seis anos de idade, já tinha tido uma violenta discussão com o padre na catequese a propósito da criação de Adão e Eva. E que discussão! Não aceitei minimamente a estupidez que me quis impingir e não levei com a cana da índia, porque era um homem bom, mas não muito inteligente, se fosse o professor, que era o oposto, eu tinha ficado calado, mas apenas por causa da cana, obviamente.

Quando Thomas Huxley, o “buldogue” de Darwin, foi interpelado no famoso debate com o bispo Samuel Wilberforce, em que este lhe perguntou se descendia dos macacos por parte da mãe ou do pai, numa atitude provocatória, prenunciadora de uma mudança social e cultural sem precedentes suscetível de perturbar a ordem existente dominada pela religião, determinou a necessidade absoluta de separar as duas formas de ver e explicar o mundo. Mas parece que não, criacionismo e o desígnio inteligente intrometem-se constantemente na ciência, sempre com o objetivo de a religião não ser subalternizada ou perder a força. O recente debate entre o arcebispo Rowan Williams e o cientista ateu Richard Dawkins, realizado na Universidade de Oxford, fez recordar o outro.

Evidentemente que há perguntas que ficam sem resposta, mas, presumo, que não se deveriam misturar as duas conceções. Dizem alguns entendidos que Deus e a religião não são “para o bico da ciência”, e dizem muito bem, mas também é preciso dizer, nesse caso, que a ciência também não é para o bico da religião. De qualquer modo, registo algo que considero muito positivo, os “atuais bispos” já admitem ser também descendentes dos “macacos”. Sempre é uma evolução. Quem deve andar um pouco perturbado com isto tudo é a alma de Samuel Wilberforce.

Paciência, Wilberforce!

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