“Mário Soares não me fez favor nenhum”

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Continua a orgulhar-se do 25 de Abril?

É para mim um acontecimento apaixonante, de que me orgulho muito. O 25 de Abril foi um trabalho solitário, porque não tive ajudas de ninguém. Poderia ter criado um estado-maior. Com o 25 de Novembro, o Eanes criou um estado-maior poderosíssimo, com o que havia de melhor de oficiais portugueses na altura. Eu trabalhei sozinho. Escrevi 26 páginas da Ordem de Operações absolutamente de forma solitária. E, ao fazê-lo, assumi uma responsabilidade enormíssima que, felizmente, se concretizou da melhor forma com o apoio dos meus camaradas que intervieram e que estiveram no terreno.

Costuma dizer que, se naquela época soubesse o que sabe hoje, não teria feito o 25 de Abril…

Sim. Hoje penso: mas será que terá valido de facto a pena? A situação está terrível, pá. Há muitos que dizem que isto está pior do que antes do 25 de Abril. Fico extremamente amargurado com isso. Estivemos ali a sacrificarmo-nos e a colocar em risco a nossa vida e a nossa carreira militar, a nossa profissão. Terá valido a pena? Eu continuo a considerar que sim e continuo a orgulhar-me de ter feito o 25 de Abril. Porque houve uma coisa fundamental que ainda hoje existe: a reconquista da liberdade, ou do conjunto das liberdades, e a recuperação da dignidade, do conceito de cidadania. Ou seja, do cidadão que tem a sua dignidade própria e que é livre, num Estado livre.

Tem também afirmado que, com as medidas de austeridade, os últimos governos estão a passar uma “certidão de óbito ao 25 de Abril”…

Sem dúvida. O 25 de Abril abriu uma esperança enorme para o povo que hoje vive, outra vez, em condições de extrema dificuldade, com enormes sacrifícios. Eu penso no povo, na amargura, na tristeza de milhões de portugueses. Penso o que sucede a um casal que fica desempregado e tem que criar dois, três ou mais filhos enquanto um gestor ganha três milhões de euros de gratificação… Aquela esperança que o 25 de Abril abriu está a morrer e está a ser passada uma certidão de óbito total.

Como comenta a atuação deste governo?

Há uma submissão em relação à grande potência atual da Europa que é a Alemanha, evidente na conversa trocada entre Victor Gaspar e ministro das Finanças alemão em que este, complacentemente, diz ao Gaspar: “se a opinião pública não fizer muito barulho, talvez consiga fazer o resgate de Portugal com condições melhores…” Quer dizer, sem consultar qualquer instituição europeia, o ministro das Finanças alemão decidiu dar esta papaia… É o domínio de um país dominante na Europa em relação a um país periférico. E nós somos um país periférico. Ora, há aqui uma submissão e uma perda de soberania. Esta perda de soberania é tão marcante que foi por isso que eu disse que estão a ser atingidos limites.

Já afirmou mais do que uma vez que, quando há perda de soberania, as forças armadas devem atuar…

As Forças Armadas estão ao lado do povo português e são as guardiãs da democracia. Os militares são, de facto, e devem ser os defensores máximos e representar todo o povo. E quando há perda de independência nacional só as forças armadas têm que atuar. A minha opinião é que haja uma operação militar que derrube o Governo, mesmo sabendo que o Governo foi eleito. Mas estarão os portugueses satisfeitos com o poder que elegeram?

O sr. Coronel tem uma neta de 22 anos. Foi este o país que sonhou para ela?

Não. Francamente não.

Como comenta este apelo à emigração por parte do Governo?

É uma válvula de escape. Antes do 25 de Abril, o fenómeno da emigração dava-se ao nível das classes sociais mais baixas que aqui encontravam-se em situação extremamente difícil para conseguir um emprego ajustado à sua formação – ou à falta dela – e que saíam do país para ir procurar lá fora um estatuto melhor, financeiro, económico. Portanto, saíam do país e conseguiam rapidamente amealhar um pecúlio que aqui era impossível. A ideia deles era ir lá para fora, ganhar dinheiro para depois voltar, construir a sua casa e ostentar uma certa dose de riqueza que lhes dava um certo estatuto de “foi emigrante, mas venceu”.

Atualmente a questão é diferente: é gente que, indo lá para fora já não regressa. Porque afirma-se, granjeia estatuto e prestígio e já não está disponível para regressar a Portugal quando lá para fora ganha 10 vezes mais do que ganharia aqui. E isso significa que estamos a perder uma massa de trabalhadores jovens de grande mérito, que vão revelar-se e afirmar-se fora do país, que vão constituir família e que depois já não estão disponíveis para regressar.

É uma geração mais desprendida e mais desiludida com o país que tem?

Sim, sim. Mas isto é muito defeito da partidocracia existente, pá. Os partidos da assembleia constituinte criaram logo um sistema em que deram um poder muito forte aos partidos políticos. Isso mantém-se se até hoje e eles não estão disponíveis para abdicar disso. Porque o poder dos partidos é tal que há um conceito nas pessoas de que quem não está num partido não tem hipótese de singrar, de atingir, financeiramente e societariamente, os níveis que gostaria de atingir.

Há alguns anos viu o seu nome envovido no caso das Forças Populares 25 de Abril (FP-25 )….

Sim. E ainda hoje não consegui desenvencilhar-me disso. Mantém-se o ónus de eu ter liderado uma organização terrorista, quando eu sei exatamente o que houve e como aquilo foi construído para me rebentar com qualquer hipótese de eu singrar em qualquer carreira política. Preparava-me para ser cabeça de lista pela FUP [Força de Unidade Popular] para as eleições parlamentares de 1984 quando saltam as FP24 e o PCP enrola-me naquilo e liquida-me. A malta do Ministério Público era do PCP. Até hoje isso ainda não ficou clarificado na opinião pública e a malta de direita continua a afirmar que eu fui um assassino…

Isso magoa-o?

Não me magoa, vindo de quem vem. Mas… Há pessoas que ouvem isso e que ficam convencidas de que aquilo é verdade. Eu gostaria de ver isso esclarecido. A opinião pública está convencida que, em 1996 a amnistia safou as FP 25 de cumprirem penas de prisão e que foi um bom favor de poder de Mário Soares. Não foi favor nenhum. Longe disso. Ele sempre que me encontrava, vinha ter comigo, passava-me a mão pelo lombo e dizia: “Sr. General, nós temos que arranjar solução para isso. Podia pedir um indulto.” Eu? Pedir um indulto? Não! Na época eu tinha um recurso no Tribunal Constitucional (TC), que eu já sabia que, maioritariamente me dava razão. Dando-me razão, o processo regressava à estaca zero para reinício do julgamento. Ora, eu já tinha sofrido naquela altura cinco anos de prisão preventiva. O Mário Soares dizia-me: “não pode ser porque se o acórdão do TC for publicado é um desprestígio para a justiça portuguesa”. Mas eu disse-lhe: “não tenho nada a ver com isso. Eu quero é saber qual é o acórdão do TC”.

E o que é que o Mário Soares fez?

O Mário Soares, a última coisa que faz, quando sai em 1996 da Presidência da República, é enviar a carta ao Almeida Santos, então presidente da AR, para propor uma Lei de Amnistia que vai ser aprovada pelo PS e PCP e que não abrangia os crimes de sangue. Mais tarde, em 2001, vou de novo a julgamento porque vão ser julgados os crimes de sangue das FP 25. E eu fui sentar-me no banco dos réus, no Tribunal da Boa Hora. No fim, fui absolvido e pensei: “então, como é que pode ser absolvido o crânio máximo, o chefe máximo, o mentor intelectual e executivo das FP 25? Como é que pude ser absolvido dos crimes de sangue pelas FP 25 quando tinha sido condenado pela criação daquela organização terrorista uns anos antes? Isto não cabe na cabeça de ninguém. O Ministério Público recorreu para a Relação, que encerrou o processo. E eu fiquei absolvido. Então, eu estava à espera de ser condenadíssimo para continuar o processo de luta e fui absolvido? O que é isto? Isto é gozar com uma pessoa…

Tem alguma ligação a Coimbra?

Tenho aqui familiares de quem sou muito amigo. Infelizmente, no mês passado estive cá, no funeral de uma querida tia minha, que faleceu com 93 anos. Fui, durante três anos, professor na Escola Central de Sargentos de Águeda e sempre que ia passar os fins de semana a Lisboa , almoçava em casa do meu tio, em Coimbra.

Recorda-se da crise estudantil de 1969?

Sim, e repare que todo esse tipo de acontecimentos foi um avolumar para que ocorresse a revolução. Quando eu digo que as Forças Armadas suportam tudo até que sejam ultrapassados determinados limites é esse tipo de circunstância, é esse somatório de atitudes, de ações, que depois são reprimidas porque há consequências graves no fascismo, no regime ditatorial para que isso aconteça. São consequências graves para os cidadãos que arriscam, que lutam, e tudo isso vai constituindo um histórico até que se atinja um limite.

Foi o que aconteceu com o 25 de Abril?

Foi o que aconteceu. Os militares iniciaram uma luta de caráter corporativista porque começaram a ser prejudicados as suas promoções o que, na carreira militar, é uma questão sagrada. E quando os militares, que vão fazer o 25 de Abril – o Movimento dos Capitães –, chegam à conclusão que ao fim de 12 anos, quando o povo, sacrificado, está à espera de uma solução para a guerra, ela vai continuar… Repare que 40 por cento do Orçamento do Estado, nessa altura, era destinado às Forças Armadas para manter 200 mil militares em comissão pelos vários sítios do Império… Ao fim de 12 anos, quando estamos à espera que haja uma solução política – que, aliás, o próprio Spínola propôs e que foi rejeitada porque a extrema direita era muito forte e não permitia que se aligeirasse uma partícula do império… Quando estamos à espera que haja uma solução política para a guerra colonial e que se dê início a uma descolonização que poderia ter sido ótima (poderíamos ter criado uma Commonwealth portuguesa), isso só não acontece, como recebemos por parte do Governo a intenção de continuar a guerra colonial, colocando ao serviço civis e oficiais milicianos, o que iria permitir uma continuidade da guerra. Já não se aguentava. Já não era possível. Tinha que haver uma solução política para aquilo.

Foi uma boa solução política, a descolonização? A forma como foi feita?

Eu acho que foi a possível. Claro que o ideal teria sido – tendo havido uma solução política –, entrar em negociação antes do 25 de Abril. Se o Marcello Caetano tivesse entrado em conversações com o próprio Amílcar Cabral (o Amílcar Cabral era um Mandela) isso podia ter, perfeitamente, acontecido. O Spínola traz essa proposta ao Marcello Caetano e nada. Rejeitou. Apesar de tudo, demos um exemplo notável ao mundo. Apesar de tudo o que dizem da descolonização e de como ela foi feita, não houve ponta de neocolonialismo nosso em relação às antigas colónias, conseguimos estabelecer relações fraternas… Tivemos a possibilidade de, perante o mundo, termos tido uma projeção muito grande.

Como encara a entrada das mulheres nas Forças Armadas…

Encaro bem. Há mulheres páraquedistas, mulheres que pilotam aviões de caça, portanto… A mim, o que me oferece alguma perplexidade é, em operações de terreno, no exército, uma patrulha, uma ação de normalização, por exemplo. E aquilo é um sacrifício tremendo. Eu tive duas comissões em comando de tropas no terreno, uma como alferes e outra como capitão, e aquilo é uma coisa dura. E embora a mulher esteja longe de ser um ser frágil, fisicamente a fragilidade é superior à dos homens. De resto, tudo bem.

É da opinião de que o país precisaria de um novo 25 de Abril?

Naquela altura, o nosso objetivo era elevar o mais possível o nível económico, social e cultural do povo português e, depois de recuperada a dignidade, liberdade e direito de cidadania… Este povo, que viveu 48 anos sob uma ditadura militar e fascista, merecia mais do que dois milhões de portugueses a viverem em estado de pobreza…. Por isso não tenho dúvida nenhuma que seria necessário um novo 25 de Abril.

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