J. L. Pio Abreu
Os desenvolvimentos recentes da Medicina são a esperança dos cidadãos e o susto dos governos. São a esperança dos cidadãos porque existem hoje soluções técnicas para a maioria dos problemas de saúde. São o susto dos governos porque têm de velar pelo acesso aos cuidados de saúde e, muitas vezes, pagá-los a preços astronómicos.
Porém, alguma dose de ilusão envolve estes progressos que não conseguem, apesar de tudo, erradicar a morte do destino humano. O encarniçamento terapêutico, por vezes sem auscultação dos supostos beneficiários que enfrentam uma qualidade de vida degradante, é um dos maiores problemas actuais. Muitos doentes deambulam pelos hospitais de alta tecnologia sem controlo da sua vida e sem dispor de informação que os ajude a enfrentar os tormentos e a saber o que podem esperar. A tecnologia médica num hospital de ponta pode ser um factor de desumanização. Só não o sabe quem nunca enfrentou uma sala de urgências, um pavilhão de quimioterapia ou a espera das imagens produzidas por uma máquina omnisciente mas implacável. Muitas vezes, a entrada num hospital é uma descida aos infernos.
Entre internistas e cirurgiões, com a sua parafernália de instrumentos, o doente pode ser visto como uma máquina funcionante, muitas vezes dividida por vários órgãos tratados por especialistas. Quando se trata de avaliar a pessoa que está por detrás dessa máquina, uns e outros chamam o psiquiatra. No contexto actual da Medicina tecnológica, a Psiquiatria tem sido encarada como factor humanizante, pois entende a pessoa na sua unidade, no seu conjunto e nas relações significativas com quem ama e partilha alegrias, sofrimentos, esperanças, medos, vitórias e derrotas. O futuro da Medicina, e mesmo o correcto equilíbrio dos recursos, depende muito da importância que se der à Psiquiatria. Acresce que as mais recentes descobertas começam a franquear a última fronteira: a da mente e do seu papel no restabelecimento da saúde. Já se sabia que o organismo se defende dos ataques a que é submetido, corrigindo desequilíbrios e cicatrizando feridas em processos de auto-regulação. Mas o que se vai descobrindo é que o sucesso ou insucesso da auto-regulação depende da mente e do estado de espírito que ela apresenta. Também conhecíamos alguns milagres terapêuticos. Mas o que ainda poucos sabem é que eles se podem explicar pelos avanços científicos mais recentes no âmbito da Psiquiatria. Por outro lado, começa a saber-se que de nada serve o encarniçamento terapêutico se ele não for acompanhado de uma boa saúde psíquica.
Com tal importância, a Psiquiatria é hoje temida e admirada, e ainda disputada por outros ramos do saber aplicado. Frequentemente, também os psiquiatras se isolam nos seus hospitais e se dedicam ao uso dos psicofármacos sem levar em conta os conhecimentos, avaliações e procedimentos que a Medicina actual reconhece. Esta atitude tem prejudicado a imagem da Psiquiatria, vista como prática asilar, o que leva os outros médicos a desdenharem-na e a quererem ver-se livres de tão incómodos vizinhos. Existiam no distrito de Coimbra vários hospitais deste tipo que se foram desactivando progressivamente. Pelo contrário, o serviço de Psiquiatria da Universidade, fisicamente integrado no Hospital, subsistiu e desenvolveu-se, tornando-se líder e modelo de uma psiquiatria do futuro.
A direcção conjunta dos hospitais públicos de Coimbra pode ser uma oportunidade para um melhor entrosamento das capacidades já instaladas. No que respeita à Psiquiatria, porém, existe o risco de retrocesso a uma prática desligada da tecnologia e especialidades médicas, ou a possibilidade de abrir uma janela para a Medicina do futuro. De decisões aparentemente circunstanciais, como a proximidade dos serviços de Psiquiatria em relação ao núcleo central das práticas médicas e cirúrgicas, pode depender aquilo que se vai ensinar aos alunos.