Manuel Castelo Branco, presidente do Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Coimbra (ISCAC), tomou posse há dois anos, sabendo que o ensino superior estava a atravessar a pior crise das últimas décadas. Ainda assim, acredita que a qualidade humanística é “a única apta a permitir a participação construtiva” na sociedade. É esse valor quer transmitir aos alunos que se formam no ISCAC.
O ISCAC tem vindo a apostar, sobretudo, na área da gestão. É uma área estratégica?
Somos um instituto de contabilidade e gestão, mas somos cada vez mais uma escola de gestão, de administração empresarial e pública. Aliás, já somos, atualmente, a escola de gestão de Coimbra. O nosso curso mais forte de entrada é o curso de Gestão de Empresas, orientado para PME’s.
O Business School tem sido um sinal claro dessa estratégia…
Sim, a hoje denominada Escola de Negócios de Coimbra/Coimbra Business School está com um dinamismo extraordinário devido, sobretudo, ao trabalho da sua diretora [Dr. Cidália Lopes], que tem imprimido aos cursos de pós-graduação um intenso ritmo e uma crescente diversidade. Mas nós queremos alargá-la. O modelo está a ser pensado e está relacionado com a conceção que temos de uma escola de gestão: tem que ter uma fortíssima vertente cultural, política e social. Tem que ser uma escola de pessoas e não, apenas, de direção de empresas. Queremos um modelo personalista e humanista de escola. Queremos, fundamentalmente, que os nossos cursos de gestão – também os de gestão pública – estejam focados, não na empresa enquanto um fim em si mesmo, mas na empresa enquanto instrumento de um fim último que a transcende: as pessoas.
Mas a gestão não visa a maximização de lucro?
Não, o importante não é, não deve ser, apenas, a maximização de lucro corporativo. Também importante é ver as empresas, sobretudo, como instrumentos de realização e livre desenvolvimento da personalidade das pessoas que a constituem, desde logo dos trabalhadores. É ver os trabalhadores não como permutáveis e descartáveis factores de produção, mas como pessoas. Queremos trazer para escola essa visão humanista e personalista do mundo e da vida. Por outro lado, queremos que os nossos alunos tenham plena consciência que o saber que lhes damos é um saber epistemologicamente frágil, incerto e inseguro. Por isso, gostaríamos de, sobretudo na Coimbra Business School, começar a introduzir cursos breves com significativa componente política, histórica, sociológica, filosófica e cultural, nomeadamente cursos de história da Europa, cursos de filosofia na área da crítica epistemológica das denominadas “ciências” empresariais. Queremos trazer o saber profundo das artes e das humanidades para os cursos de gestão. A nossa matriz é essa. Não é uma matriz original: limitamo-nos a tentar seguir o que, entre outros, Edgar Morin e, entre nós, Boaventura de Sousa Santos, há muito apontam.
Preocupa-o este momento difícil que os alunos estão a viver?
Sim, é uma questão que nos preocupa muito mas, apesar de tudo, temos uma visão muitíssimo otimista desta geração. Os alunos vivem tempos dificílimos, que as gerações anteriores não viveram. Têm um ensino de muito pior qualidade, porque é um ensino muito mercantilizado: desde logo, temos uma tenaz, Bolonha, que diminuiu os currículos, tornando os cursos muito técnicos, o que faz com que a formação seja muito pobre e, logo, acrítica. Por outro lado, as restrições orçamentais – que colocam o ensino superior na pior crise dos últimos 20, 30 anos –, fazem com que os professores tenham um trabalho burocrático como nunca antes tiveram. Logo, não têm tempo para preparar convenientemente as aulas. O ensino superior tem um tempo lento, de reflexão cuidada, de estudo pensado, e isso desapareceu com o infeliz modelo bolonhês. Tal reflete-se, inevitavelmente, na qualidade do ensino ministrado. Além disso, os alunos, que deviam estar em turmas de 30 ou 40 estão, na nossa escola, como nas demais do ensino superior, por razões estritamente orçamentais, em turmas de 100, 120… às vezes 200. São circunstâncias que vamos pagar muito caro nas próximas gerações.
Os alunos estão a passar por dificuldades financeiras?
Estão. Por enormes dificuldades. Tenho a noção plena que grande parte dos nossos alunos vivem e estudam no limiar mínimo de uma existência digna. Vão sobrevivendo com empregos em part-time onde são brutalmente explorados – e é bom isto ser dito. Ganham metade do ordenado mínimo (quando ganham…), com contratos de trabalho de 15 dias, que eu não queria acreditar que existissem (mas existem…), findos os quais são sumariamente despedidos e substituídos. Experimentam, muito cedo, a permutabilidade do humano…
O apoio social é insuficiente?
O dito apoio social escolar é vergonhoso. O sistema que existe faz com que só os alunos em estado de pobreza familiar total tenham acesso ao apoio social escolar, posto que consigam ultrapassar as barreiras e armadilhas burocráticas, intencionalmente colocadas ao próprio ato de solicitação. Este ano, por exemplo, os alunos tiveram, obrigatoriamente, que se candidatar ao apoio social escolar logo no momento e no ato da candidatura de acesso ao ensino superior, através da plataforma eletrónica. Na plataforma tinham que colocar a morada de destino, que não conheciam ainda, pois ignoravam onde seriam colocados. Isso foi pretexto para a solicitação de apoio não ser aceite. Depois, se os pais têm dívidas fiscais ou à Segurança Social não são elegíveis. Ora, se a família tem dívidas dessa natureza, encontra-se claramente em situação de dificuldade económica, sendo que, para mais, hoje em dia, a um sistema automático e imediato de penhoras corresponde um longuíssimo tempo processual (8-10 anos) de apreciação judicial da respectiva legalidade.
O que pode o ISCAC fazer para ajudar esses alunos?
Tentamos mitigar, na medida do possível, as dificuldades, dando-lhes algum conforto. Assim, por exemplo, temos a escola ininterruptamente aberta 23 horas por dia, até às 06H00, com uma sala de estudo sempre disponível, e fizemos obras na cafeteria, de modo a transformá-la, também, em espaço de estudo. Por outro lado, além dos mecanismos formais do apoio social do IPC, temos também os nossos mecanismos informais. Daí que procuremos parcerias com associações de natureza social, empresas e outras instituições que trabalham connosco para podermos ajudar. Ademais, os alunos em situação de dificuldade pagam as propinas à medida das suas possibilidades. Temos planos individuais de pagamentos e os alunos por eles abrangidos vão pagando na medida e no tempo das suas reais possibilidades. Não há um único aluno, no ISCAC, que deixe de estudar por não poder pagar propinas. No entanto, verificamos que os alunos têm natural pudor e, portanto, não se manifestam nem pedem ajuda. Mas as situações que chegam a nosso conhecimento mostram que a solidariedade está a funcionar entre colegas.
De que forma?
Temos conhecimento que há alunos que não têm dinheiro para pagar rendas, propinas, livros, e que são acolhidos por colegas nos respetivos quartos, e que são por aqueles ajudados, alimentados… Há mecanismos de solidariedade entre estudantes que estão a funcionar e que são muito positivos, e que me fazem ser inabalavelmente otimista sobre a qualidade humana das atuais jovens gerações.
O Instituto Politécnico de Coimbra (IPC) também está a viver momentos conturbados…
A minha posição sobre o que está a acontecer no IPC é crítica. Aprecio muitíssimo, pessoalmente, o atual presidente do IPC, Dr. Rui Antunes. Isso permite-me dizer, com à vontade, que não entendo a inconstância estratégica do politécnico. Aliás, o problema começa no próprio do Governo: o programa para o ensino superior é uma página e meia repleta de banalidades, e a única coisa que dela ressalta é a manutenção da dicotomia politécnico/universidade. No entanto, nem essa banalidade está a ser cumprida, porque, no discurso público o que se fala é de um movimento de reorganização – e ninguém sabe bem qual, muito menos o atual ministro, – e de fusão entre politécnicos e universidades. Portanto, neste momento, nem o próprio Governo tem uma política e uma orientação que nos possa servir de referencial. Isso é muito grave. Além disso, o governo está a estrangular, por via orçamental, o ensino superior e eu começo a acreditar que se quer começar a despedir. Como? Não dando verba para as escolas funcionarem. No ensino superior, como nos demais, as “gorduras” a cortar são, tão-só, sinónimo de pessoas a despedir.
O que pensa em relação ao futuro do IPC?
Penso que as escolas, todas elas, têm muito maior peso do que o próprio IPC e qualquer reorganização que passe por acabar com a identidade das escolas constituirá uma insensatez. Fala-se de vários modelos, de duas escolas…
Fala-se do fim da Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Oliveira do Hospital (ESTGOH)…
O ISCAC está na origem da ESTGOH. Estava no conselho geral, em meados de 90, enquanto representante da escola, e votei favoravelmente a ESTGOH, num contexto político diferente, que era o contexto de aposta no desenvolvimento do interior, na regionalização… Ora, numa lógica de desenvolvimento do todo territorial a ESTGOH faria, e faz, todo o sentido. Agora, a manter-se como está, com a presente oferta formativa não faz sentido nenhum, porque tem cursos puramente decalcados do ISCAC e do ISEC e, evidentemente, a procura é e terá que ser sempre muito diminuta. Além disso, tem um custo orçamental desproporcional e, para nós, em termos comparativos, intolerável. O ISCAC tem 2.700 mil alunos, mais de 100 professores, e um orçamento para este ano de 3,4 milhões. A ESTGOH, com 300, 400 alunos, cerca de 40 professores – sem despesas com instalações, porque são cedidas pela câmara – tem um orçamento de 1,6 milhões. O ISEC, com mais 300 ou 400 alunos do que o ISCAC (cerca de 3.000) – com o dobro de professores, é verdade –, tem um orçamento de 11 milhões. E nós não podemos aceitar isso. Porquê? Porque traduz um subfinanciamento a todos os títulos irracional, implicando que no ano passado, por exemplo, praticamente não tenhamos comprado livros para a biblioteca, sendo que a atualização da biblioteca é um decisivo critério de avaliação e de manutenção dos cursos. É uma das perversidades do actual sistema.
O que defendem?
Defendemos que a ESTGOH deve continuar como escola juridicamente autónoma ou, no mínimo, como pólo do IPC, mas com cursos adequados à região, aptos a uma efetiva procura, cursos, por exemplo, ligados à floresta, às ciências agrárias, às PME’s, convocando, para tal, e cursos e saberes de todas as demais escolas do IPC. Mas defendemos, ao mesmo tempo, a expansão do IPC para o litoral, para a Figueira da Foz. Há interesse do presidente da câmara, repetidamente manifestado, que o IPC se instale naquela cidade. E consideramos ser um erro colossal o politécnico não avançar para a Figueira da Foz, com cursos também adequados ao contexto local, ligados, nomeadamente, ao mar, à logística, ao turismo… Não percebemos – havendo interesse da Câmara da Figueira, das associações empresariais e forças vivas locais, havendo instalações da antiga Universidade Internacional –, que não se avance… Em resumo: para nós, o IPC, como atitude estratégica, deveria manter a ESTGOH, embora com cursos diferentes dos atuais, avançar para a Figueira da Foz e diversificar ao máximo as escolas que tem em Coimbra. Isto, também, para se preparar antecipada e preventivamente a algum cenário administrativo de fusão. Porque temos fundado receio que a reorganização do ensino superior seja decidida ao infeliz modo da fusão dos hospitais em Coimbra: sem qualquer fumo de estudo prévio.
Já se fala numa hipótese de fusão com a universidade?
Fala-se, mas, repito, não temos nenhum fio-de-prumo, nenhum rumo de horizonte. Se o programa de Governo afasta essa possibilidade, o discreto e quase invisível discurso do ministro Nuno Crato parece inclinar-se para o cenário de fusões. E o meu temor é que sejam feitas fusões no papel, a régua e esquadro, sem qualquer estudo prévio. Mas a escola está preparada para qualquer cenário de reorganização.
Falando do presente: o ISCAC não tem problemas no que respeita às taxas de empregabilidade dos seus diplomados…
Nessa lógica, somos uma escola de sucesso, mas o sucesso de uma escola não pode ser apenas medido por índices de empregabilidade. Esse é um dos mitos da lógica mercantilista-utilitarista infelizmente dominante. Desde logo, porque deve, também, ser medido pela capacidade de empreendedorismo, critério no qual o ISCAC se sente plenamente confortável. Mas voltamos ao nó górdio da nossa conceção de escola: a lógica de que o ensino superior é para o emprego ou empreendedorismo, embora importante, não pode ser dominante nem exclusiva. Uma instituição de ensino superior não é uma empresa, é uma escola, ou seja, um locus de constituição e de transmissão crítica de saber e de conhecimento, devendo preocupar-se, principalmente, com a qualidade do ensino que ministra aos seus alunos. Não apenas a qualidade técnica – sempre frágil e falível – mas, sobretudo, a qualidade humanística, única apta a permitir a participação construtiva na polis.
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