“Os organismos oficiais não podem criar regras para asfixiar as instituições sociais”

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A criação de uma associação de solidariedade social pressupõe a existência de público alvo.

A Integrar nasce a partir da iniciativa de um grupo de pessoas que trabalhava na área da reinserção social na administração pública . Um grupo que há 17 anos se debate com novos problemas sociais, que os organismos onde trabalhavam não abrangiam. Numa fase inicial, e porque começavam a aparecer muitos miúdos na rua e não havia instituições para trabalhar com eles, achou-se que era importante juntar pessoas disponíveis para criar uma associação que complementasse o trabalho que a administração pública desenvolvia.

O que mudou em 17 anos de Integrar?

Penso que, mais do que uma mudança, criaram-se respostas. Começámos com um projeto para os miúdos de rua, financiado pelo Instituto da Juventude nos chamados OTL’s. Entretanto, a instituição evoluiu para áreas sociais mais marginais. E ao fim destes 17 anos, tudo o que sejam franjas marginais da população, contam com a Integrar. Toxicodependentes, sem-abrigo, prostitutas, ciganos, imigrantes de leste.

Áreas complicadas e diferentes dos problemas tradicionais que não estavam contempladas nos tradicionais apoios oficiais.

Há, sem dúvida, duas coisas que estão ainda muito presentes na nossa existência. O facto de não estarmos vocacionados para trabalhar naquilo que são as respostas tradicionais, em termos de idosos ou ATL’s, e, por outro lado, manter a atitude cívica que esteve na origem da associação. Ou seja, a instituição não intervém só com projetos e com áreas onde haja financiamento. Se considerar que é importante fazer alguma coisa numa determinada área, avança sem estar a contar que o Estado lhe dê dinheiro.

De onde lhe vêm os recursos?

Apoio do Estado fundamentalmente, candidatura a financiamentos comunitários, nomeadamente na área da formação e a criação de receitas próprias. A Integrar criou uma série de serviços que procuram trazer receitas próprias e que, às vezes, acabam por trazer, por arrastamento, donativos individuais ou de empresas. Mas pouco. Uma instituição sediada em Lisboa tem mais facilidade em pegar em dois ou três atores conhecidos e fazer uma campanha que ganha visibilidade e consegue cativar grandes empresas. Coimbra fica a 200 quilómetros de Lisboa e torna-se difícil trazer uma estrela do futebol, um ator ou cantor conhecido. Independentemente disso, é esta mistura global que permite à Integrar fazer coisas diferentes.

Que tipo de serviços garantem à associação receitas próprias?

Na área da jardinagem, pequenas reparações, pinturas, mudanças, festas de aniversário na quinta dos Olivais e a venda de produtos biológicos. Não é que seja uma receita muito acentuada, porque estamos a concorrer com quem está no mercado, mas o que entra dá jeito. As receitas permitem-nos garantir e criar novas respostas.

Existem em Coimbra outras instituições a trabalhar com os mesmos públicos alvo. Há cooperação inter-instituições?

A instituição deve ter para cima de duas centenas de protocolos estabelecidos ao longo destes anos. E na articulação com as outras instituições temos sempre a perspetiva de não intervirmos em áreas, quer geográficas, quer de resposta, que outras instituições tenham. É fundamental não duplicar quando o trabalho é bem feito. Na área da prostituição, por exemplo, temos a Cáritas que faz um trabalho brilhante há muitos anos. Por isso, as nossas equipas, quando se detetam situações dessa natureza, encaminham para quem devem. No caso das equipas de rua, e isso é um trabalho muito bem feito entre a Segurança Social e a câmara, dividiram-se as áreas de intervenção das várias equipas e os dias em que cada uma anda na rua. O grande problema é que há iniciativas, às vezes até de associações de voluntários, que aparecem porque está na moda.

Está na moda o voluntariado? Mas isso é bom nos dias que correm.

O voluntariado sério e continuado é um bem precioso. Mas hoje, o sem-abrigo virou moda, e por isso toda a gente acha que deve dar resposta a essa área. No entanto, muitos andam pelas ruas e depois de alguns meses desaparecem, criando problemas maiores do que os que resolveram. Há situações que demoram meses a motivar para saírem da rua e irem para um centro de acolhimento. Não nos podemos esquecer que estamos a falar de pessoas que vivem durante muitos anos sem regras, sem horários, sem obrigações. Nenhum técnico tem uma varinha de condão. São meses e meses de trabalho e de motivação.

É mais fácil ir para a rua do que sair dela?

É mais fácil ir para a rua do que, às vezes, dar o passo para voltar a sair da rua. Mas também temos indivíduos a viverem na rua que fizeram uma opção de vida. E as instituições também têm que se habituar a respeitar as opções de cada um. Desde que a liberdade deles não colida com a liberdade dos outros, ninguém pode ser impedido de viver onde quer. Pode parecer chocante, mas é verdade.

Há uma situação que a Integrar sinalizou – de um sem-abrigo que dormia na Baixinha – e que só agora foi resolvida. Porque é que há situações que se arrastam tanto tempo?

Essa situação é o exemplo concreto de que quando as instituições não querem fazer nada refugiam-se sempre em aspetos formais. A Integrar tentou durante muito tempo que as instituições oficiais tomassem posição. Chegou ao cúmulo de levar o senhor ao hospital para que se tentasse o internamento, que lhe foi recusado. Toda a gente se refugiou, nomeadamente as estruturas oficiais, nas questões formais. Foi feita uma informação ao tribunal que, neste caso até decidiu, mas depois as coisas só podem funcionar se as estruturas derem resposta. Os internamentos compulsivos têm que ser uma proposta da autoridade de saúde com o apoio do tribunal. É uma situação chocante mas devia chocar quem num organismo público recebeu o processo, olhou e disse que a lei não se aplica.

Esta situação que se vive no país obriga à criação de novas respostas?

Obrigou, sobretudo, a uma estratégia diferente. O número de pessoas que começou a acorrer à instituição, aumentou e com duas vertentes. Por exemplo, enquanto que o sem-abrigo tradicional vivia muito dos problemas de toxicodependência, de alcoolismo, hoje, começaram a aparecer pessoas que não têm essas problemáticas, que perderam o emprego, que deixarem de poder pagar o quarto e que passam a ter a rua como único sítio para viver. E houve, claramente, um aumento. Depois começou a acontecer um outro fenómeno de pessoas que precisam de roupa e de algo para comer e que querem saber onde o podem ir buscar e se há muita gente. Isso obrigou a que a instituição tivesse que procurar respostas diferentes.

Lojas de roupa?

Por exemplo. Já tínhamos há 17 anos um pronto a vestir social que normalmente, dava resposta aos utentes que acompanhávamos. Mas, nos últimos anos, mercê da procura, teve que lhe dar um incremento mais forte. Só nos primeiros seis meses do ano, a Integrar recebeu nove mil peças de vestuário, fruto das campanhas que foi fazendo. Entretanto, chegou à conclusão de que os donativos que tem recebido são em excesso e, começámos a fazer protocolos com instituições para escoar o que nos chega. Já fizemos protocolos e temos previstos mais, à semelhança do que acontece com os produtos da quinta.

Quantos utentes acompanha a Integrar?

Os nossos dados de agosto dizem-nos que já estávamos com o apoio a 1.500 utentes. Mais de 60 por cento destes utentes não existe a relação direta entre o financiamento da segurança social e o apoio que lhe prestamos. Mas é lógico que a equipa quando anda na rua, se encontra novas situações não vai olhar aos números do acordo nem as áreas específicas a que dizem respeito. Isto só num país de doidos.

As regras são apertadas?

O tipo de respostas que a Integrar e outras instituições do género assumem não são acordos típicos. O que acontece é que, nós criamos estruturas sociais e depois aplicamos regras de rico. Ou seja, criamos espaços de resposta na área da restauração e depois exigimos que as instituições cumpram as normas como se fossem um restaurante ou um comércio. Quando nós podíamos aligeirar procedimentos que permitiam dar respostas a mais utentes do que os inicialmente previstos. O aligeirar dos procedimentos é que é um verdadeiro programa de emergência social. Ou seja, permitir às instituições que com menos dêm maior e melhor resposta. As instituições oficiais não podem criar mais regras para asfixiar as instituições de solidariedade social. Quer se queira quer não, a sociedade civil organizada nas associações ou nas instituições consegue criar respostas que o Estado não consegue.

A Integrar tem capacidade para aumentar as respostas?

Muito honestamente, neste momento não tenham noção do que estará para vir. A situação de 2012 preocupa-me. Eu acredito que vá haver mais pessoas com problemas e a recorrer às instituições. A pensar nisso, abrimos em finais de novembro, a cozinha solidária, um espaço financiado pela EDP, que vai permitir desenvolver competências na área das refeições. Não se trata de uma espaço para concorrer com a Cozinha Económica que faz um trabalho brilhante, mas que funcionará como espaço de suporte à equipa de rua.

E vão cumprir as tais regras de transporte de refeições?

Claro que isso é impossível para instituições como a nossa. Teremos todos os cuidados, pois estamos a falar de pessoas. Mas também não estou à espera de encontrar a ASAE atrás de uma carrinha da Integrar. O cumprimento dessas exigências obrigam a investimentos incomportáveis para instituições sociais. Dar de comer a quem tem fome não pode estar dependente de regras apertadas de transporte de refeições como as que existem, por exemplo, para as escolas. Isso é uma maluqueira de um país rico. As situações excecionais exigem medidas excecionais. E nós estamos a viver situações excecionais.

E é possível rentabilizar a cozinha?

Aquele espaço pretende ter outras respostas para pessoas que saem da rua, que deixam o centro de acolhimento, que alugam um quarto e que precisam de saber cozinhar. Este espaço da cozinha solidária vai trabalhar competências na área da economia e da gestão doméstica. Vai ensiná-los a preparar uma refeição comprando produtos mais baratos. Uma das voluntárias, que vai orientar esses cursos de gestão e de economia doméstica para pessoas carenciadas, sugeriu também que se fizessem cursos para pessoas que, pagando, mesmo pouco, querem aprender a cozinhar.

Coimbra é uma cidade solidária?

Eu acho que podia ser mais solidária. Há muita gente disponível para apoiar, o que é bom. Mas, por exemplo, a estrutura empresarial que nós temos não está muito virada, de forma consistente, para apoiar projetos das instituições. Nós vamos conseguindo o apoio de algumas empresas e de algumas instituições, mas sendo nós uma cidade essencialmente de serviços e de comércio, os apoios empresariais não aparecem tanto como em Lisboa ou no Porto. Mas nós não desistimos e aprendemos que do pouco se pode fazer muito. Desenvolvemos projetos e experiências muito interessantes, nomeadamente com a AAC, que envolve estudantes e os sensibilizar para a questão da solidariedade social.

São várias as campanhas ao longo do ano, mas o “Vamos aquecer Coimbra” deixou em 2010 uma boa marca. É para continuar?

Nós já íamos fazendo essa recolha ao longo dos anos, mas em 2010 decidimos lançar a campanha de forma sustentada e o resultado foi excelente. Tanto correu bem que a equipa de rua ficou com cobertores e café para o ano todo. E, além disso, ainda ofereceu destes produtos a outras equipas de rua. Este ano estamos a tentar melhorar pedindo cobertores, café e açúcar também.

O concurso de fotografia para os sem-abrigo também é uma novidade.

É uma tentativa de vermos a cidade do outro lado. Trata-se de um concurso de fotografia que pretende mostrar as imagens e as formas de ver de quem vive no meio da rua. Os sem-abrigo são assim desafiados a mostrar a outra cidade de Coimbra, aquelas que eles vivem e que eles vêem. No final, haverá uma exposição.

Que respostas tem a associação para desempregados, que estão em crescendo?

Quando alguém bate à porta da instituição, seja porque motivo for, a resposta nunca pode ser não. É fundamental perceber que a pessoa quer e está a dar um passo, difícil, para mudar as coisas. Que não está ali só à procura de subsídios ou de um caminho para o rendimento de reinserção. Nós não fomentamos a indigência. E, por isso procuramos respostas diferentes para essas pessoas que passam, muitas vezes, por trabalhar competências com eles. É claro que não é fácil com o desemprego que existe na nossa região. Mas o fundamental é nunca dizer que não e procurar soluções em conjunto.

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