Salvador Massano Cardoso
Recordo ter assistido ao vivo a alguns debates mais acalorados em que os protagonistas não escondiam os seus estados de alma, traduzidos nas feições irritadas, nas vozes ameaçadoras e ruidosas, em movimentos corporais eivados de tremeliques patéticos e, sobretudo, no uso de certas expressões, muitas do foro médico e psiquiátrico, “o senhor é um autista”, “o senhor fez um discurso esquizofrénico”.
Ao “autismo” de um ou à “esquizofrenia” do outro, formas políticas de insulto, associavam a de palhaço, que, não sendo do domínio clínico, é também muito apetecível no hemiciclo e reuniões das comissões. O que vale é que os palhaços, os verdadeiros palhaços, não se incomodam minimamente com isso, penso eu, porque nunca ouvi qualquer associação de tão nobre atividade vir a terreiro contestar o uso inapropriado da sua profissão como sinónimo de insulto.
Fazem bem, mostrando que são superiores a esses “gajos” e a essas “gajas”. É assim que temos de falar, não é verdade, enunciando os dois géneros? No entanto, na altura, registei com algum apreço a denúncia de alguns pais e mães quanto ao uso e abuso da palavra “autismo”, porque constitui uma apropriação indevida de uma condição clínica que afeta as relações com o mundo exterior dos seus filhos. Os seus filhos são pessoas com deficiência e deverão ser respeitados como qualquer outro.
Solicitaram, e muito bem, que deixassem de utilizar as palavras autista ou autismo como forma pejorativa. Apoiado. Quanto ao uso de “esquizofrénico”, ou “esquizofrenia”, também deveriam seguir o mesmo curso, deixarem de ser utilizados como armas de arremesso. Deste modo, certas palavras, como palhaço, autismo e esquizofrenia deveriam ser retirados do léxico e do debate político. Há outras, com toda a certeza, que merecem, também, uma apreciação semelhante.
Não é só na política que tem de haver cuidado com o uso de certas palavras, mas também na medicina e no dia-a-dia. Vejamos, um diabético não deverá ser designado como tal, porque é uma forma de categorização ou de diminuição da sua condição e até de discriminação. Então, como devemos chamá-lo?
Simplesmente como “pessoa com diabetes”. Este movimento está a dar os primeiros passos e, em breve, teremos de alterar certas designações ou formas de “etiquetar” as pessoas. Um hipertenso passará a ser uma pessoa com hipertensão, um canceroso, alguém que sofre de cancro, um tuberculoso, uma pessoa com tuberculose, um depressivo, uma pessoa que sofre de depressão e, assim, sucessivamente.
Veja-se o que aconteceu há alguns anos quando certas crianças eram catalogadas de “mongoloides”, designação considerada como ofensiva. As crianças que sofrem desta doença passaram a ser designadas como portadoras de trissomia 21.
Compreendo esta corrente, e, até, aceito as justificações desde que sejam bem explicadas. Espero que as modificações subsequentes possam constituir uma mais-valia em termos de mudanças de comportamentos e forma de ser dos cidadãos levando-os a ser mais solidários e menos agressivos.
Muitos mais exemplos poderiam ser descritos, o último dos quais, de que tenho conhecimento, tem a ver com a mudança de designação do “estado vegetativo persistente”, situação caracterizada por cérebros gravemente lesionados. Como a designação “vegetativa” é considerada algo pejorativa, foi proposto a sua substituição pela “pacientes vigilantes não responsivos”.
Pretende-se, deste modo, retirar ou evitar aspetos negativos e discriminativos associados a algumas palavras ou expressões. Esta ideia não é nova, é velha. Velha? Recordo que alguns colegas meus recusam usar a palavra “velho”, para designar alguém com certa idade, indo ao encontro da sabedoria popular, segundo a qual “velhos são os trapos”. Preferem a palavra idoso. Idoso? Não pode ser, tem que a substituir por “pessoa com alguma idade”.
É muito provável que, em breve, possamos assistir a uma mudança na forma de referenciar os doentes ou deficientes, dando ênfase à pessoa, “pessoa com doença”, “pessoa com deficiência”.