“Há muitas crianças que continuam a ser maltratadas em casa”

Spread the love

Foto Carlos Jorge Monteiro

Se há histórias que merecem ser contadas, a de Teresa Granado é uma delas. Amante da liberdade, deu-se por inteiro às crianças, aos pobres, aos reclusos, a quem precisasse… “É um amor que não se agarra, mas que se dá”, diz a mulher que um dia largou o hábito para poder voar e ajudar os outros.

Nasceu na Covilhã…

Sim, em 1929, há 82 anos. O meu pai era médico, João Granado. A minha mãe era licenciada no conservatório em piano em harpa e tocava para os filhos. Naquele tempo era dona de casa.

Portanto, não era filha única…

Não. Éramos seis: três rapazes e três raparigas.

Pertencia a uma família abastada. O que a levou a seguir este caminho?

A minha mãe ensinou-nos sempre um grande amor aos outros e uma grande abertura, sentido de justiça. Naquela altura havia muitos pobres a pedir esmola na Covilhã. Embora fosse uma cidade rica – chamavam-lhe a “Manchester Portuguesa” –, havia ainda muitos pobres. Tínhamos sempre uma mesa posta na copa para quem quisesse comer. Todos os dias havia seis pratos postos e se viesse alguém à porta podia entrar e comer. Sempre achei esse gesto, por parte dos meus pais, muito bonito. Ensinavam-nos a partilhar. Uma vez foi lá um senhor velhinho com perto de 90 anos pedir esmola. Eu e a minha irmã Beatriz fomos ao guarda-fatos e demos todos os nossos fatos de verão. Ele aceitou, mas depois chamou a minha mãe e disse-lhe: “olhe as meninas não se aperceberam que eu já tenho alguma idade e deram-me todos os fatos de verão “. (ri-se) Nas férias, tínhamos que dar 15 dias da nossa vida a uma criança carente. Brincávamos com ela, dávamos-lhe banho, deixávamos que brincasse com os nossos brinquedos…

O professor Bissaya Barreto também foi uma grande inspiração para si…

Era cirurgião na clínica do meu pai. Eu soube que ele tinha uma grande obra social. Num Natal, o “Menino Jesus” deu-me um pintainho em chocolate e fui colocá-lo no prato do Dr. Bissaya Barreto, que ia lá almoçar. Quando chegaram os senhores, a minha mãe ficou muito embaraçada e mandou-me chamar. O professor Bissaya perguntou-me para que é que era aquele pintainho. E eu disse: “olhe, foi o pintainho que mais gostei no Natal e é para dar a um dos seus meninos”. Ele disse-me “tudo o que se dá com amor multiplica-se”. Dias mais tarde recebi uma grande encomenda de cinco pintainhos em loiça de Sèvres, na qual o Dr. Bissaya me escrevia: “o que se dá com amor multiplica-se. Que isto sirva para a tua vida”. Foi um modelo de dádiva para mim.

Quando decidiu dedicar-se à vida religiosa?

Foi depois de tirar o curso de Assistente Social em Coimbra. Sabe, tenho fé. Namorei como todas as raparigas, tive uma vida normal, mas depois achei que dedicar a minha vida a um homem e a uma família restrita, normal, era muito limitado. Gosto muito de ser livre. Foi dando-me aos outros, amando todos os outros, que encontrei a minha felicidade.

Então um dia deixou tudo e foi para França…

Depois do curso, fui para França para fazer o meu noviciado. Quis deixar tudo imediatamente e fui para França sozinha, para St. Brieux, na Bretanha francesa. Gostei imenso do noviciado. Aí aprendi muito. Abriram-se novos horizontes no Evangelho, o gosto pela contemplação da natureza, o nascer e pôr-do-sol, o gosto pelo canto gregoriano, pela paz, o desejo sem limites de dedicação aos outros.

Teve o apoio dos seus pais?

Ao meu pai custou-lhe muito. Foi um bocado difícil para ele. Mas a vocação era minha e a minha família tinha que compreender que era assim mesmo.

O que aconteceu depois do noviciado?

Estive no noviciado dois anos. Depois fui para Paris. E naquela altura, como era franciscana missionária de Maria, tínhamos que pedir esmola para as missões durante um mês. Aí foi um bocado difícil porque eu nunca tinha pedido esmola. Saíamos às 07H00 e entrávamos depois das 20H00. Mas a irmã que me acompanhava chamava-se Aleluia e era muito alegre, o que tornou as coisas mais fáceis. Também aprendi muito com as pessoas que davam. Uma vez um operário cortou um pedaço de sabão azul e deu-nos. Não tinha mais nada para dar. Achei que, na verdade, há sempre qualquer coisa que podemos dar… nem que seja um bocado de sabão.

Trabalho pelo mundo

Entretanto, esteve na Itália dois anos, e depois foi para Macau…

Também estive no Paquistão, uns 10 ou 15 dias. Ali conheci a grande miséria. Passávamos por corpos, com ventres inchados, estendidos no chão, crianças, velhos… E escravas. Foi a primeira vez que vi escravas. Tinham grandes argolas nos lábios, cobriam-se de branco. Um homem puxava-as com cordas e elas lá iam, carregadas com lenha às costas. Fez-me tanta impressão que chorei…Mas também havia grandes castas e grandes riquezas. Depois fui para Macau. Lá, trabalhei no Dispensário Antituberculose, fui diretora da Escola de Enfermagem e do Hospital Central Conde S. Januário. Também fui diretora na secção portuguesa do Colégio St. Rosa de Lima, com três mil alunas. Nessa altura pediram-me para ir humanizar a prisão de Macau. Gostei imenso, porque quando eu era miúda – tinha oito anos –, saía da escola e ia ter com os presos ao pelourinho da Covilhã para lhes cantar a minhas canções de escola. Achava horrível estarem atrás das grades a vender arcas de madeira, cruzetas… Por isso ia cantar-lhes as minhas canções. Chamavam-me a “mascote”.

Como foi a experiência na prisão?

Eram 100 homens e 12 mulheres. Aprendi a amá-los: cortava o cabelo aos homens, fazia-lhes a barba. Foi um trabalho fantástico. Descobri em todos os homens uma centelha de bem. Por mais criminosos que fossem, se eu procurasse bem (e às vezes é difícil), consegue-se descobrir essa centelha. Um deles, o Fong, perguntou-me: “porque é que te interessas tanto por mim. Não tens marido?” E eu disse-lhe: “não tenho porque te amo muito, a ti e a todos os presos que aqui estão. O meu Deus é amor. Um amor que não se agarra, mas que se dá”. Ele converteu-se ao catolicismo e aprendeu a fazer caixas de fósforos. Quando vim embora, lá estava o meu “bom ladrão” com uma grande prenda feita caixas de fósforos. A despedida foi um bocadinho difícil. Estive lá seis anos…

Porque regressou a Portugal?

Um dia vieram dizer-me que eu tinha que vir para Portugal para diretora do antigo Instituto Superior de Serviço Social de Coimbra [hoje Instituto Superior Miguel Torga]. Quando cheguei achei isto tudo tão pobre, a Igreja tão apagada. Parecia que ninguém fazia nada e isto, com franqueza, chocou-me muito. Mas era aqui que eu tinha que viver e trabalhar. Lancei-me. Cheguei ao instituto e passado algum tempo senti que as alunas queriam ter a licenciatura em Serviço Social. Então fui falar com o reitor da Universidade de Coimbra – na altura era o Prof. Gouveia Monteiro – que atentou ao meu pedido e enviou-me professores universitários: Vital Moreira, Manuel Porto, Boaventura Sousa Santos, Barbosa de Melo. O objetivo era elevar o curso de Serviço Social a licenciatura. E consegui.

Foi então que começou a apoiar os filhos dos emigrantes…

Naquela altura, em 1968, o maior problema era a emigração. E aí pensei criar um movimento de apoio aos filhos dos emigrantes. Os pais partiam para conseguirem ter uma vida melhor, comprar uma casa, adquirir um carro, ter uma boa alimentação. Mas não investiam na educação dos filhos. Foi nessa época que aluguei, com o meu dinheiro, um 1.º andar na rua Luís de Camões. Todas as noites reuníamos para saber como é que eles gostariam de viver. Perguntei-lhes se queriam uma casa para raparigas e outra para rapazes. Eles logo disseram: “Ó minha senhora, lá na nossa terra andamos todos juntos”. “Então vai ser misto”, disse-lhes. Isso causou uma barulheira por todo o país. Foi o primeiro lar misto em Portugal. Às vezes passavam na rua e gritavam: “aí não falta marmelada”… (ri-se de novo)

Foi assim que nasceu a Comunidade S. Francisco de Assis.

Sim. Anos mais tarde, o Instituto do Loreto, um centro para acolhimento de invisuais, pediu-me para receber crianças que tinham completado a 4.ª classe, mas que ninguém queria acolher. Estes cegos eram muitos pobres. Fiquei assustada, mas pensei: são jovens iguais aos outros, só não veem. De resto, têm as mesmas aspirações, os mesmos sonhos, o mesmo desejo de viver. Disse-lhes que sim, desde que me dessem um professor de Braille. Chegámos a ter 18 cegos e, desses, 14 licenciaram-se. Foi uma paixão da minha vida.

Como reagiram as outras crianças?

Os cegos eram tratados por iguais. Por exemplo, iam todos jogar à bola para um campo improvisado. Arranjavam uma lata, perfuravam, enchiam de areia, tapavam com adesivo e jogavam assim à bola. Uns e outros cresciam interiormente e abriam-se para outros problemas da vida. Tenho recebido alguns louvores na vida, mas aquele que senti mais, foi quando me fizeram uma surpresa numa festa da ACAPO. Condecoraram-me com um ramo de rosas pelo trabalho realizado. Comovi-me imenso e talvez tenha sido a melhor condecoração da minha vida.

Como nasceu a comunidade em Eiras?

Fomos muito ajudados lá fora: a Holanda, a Suíça, a Alemanha, a Itália… Sabe, a Igreja aqui não aceitava muito bem o facto de sermos mistos e pensavam que eu era comunista, o que foi um bocado complicado. Após o 25 de Abril, o governador ligou-me e disse que havia uma casa em Bencanta. Era a casa de Bissaya Barreto, que estava fechada há 40 anos. Aí ficámos 12 anos. Quando o Dr. Viegas Nascimento Abreu faleceu, o filho pediu-nos a casa, que pertencia à fundação. O meu desejo, e o das crianças, era criar lares substitutos das famílias, casas pequenas, como estas que temos. Fui falar com a Dr.ª Judite de Abreu, que nos cedeu este terreno (Eiras). Depois fui por esse mundo além pedir dinheiro para as casas. Os bispos alemães ajudaram-me – os bispos portugueses não gostavam muito de mim por causa da questão da misticidade.

Teve apoios lá fora que não encontrou em Portugal?

Ah, sim… Em Portugal só tive ajuda das fundações Oriente e Calouste Gulbenkian.

Quantas casas existem na comunidade?

São oito casas.

E quantas crianças?

Neste momento só temos 32, mas podemos ter 45. Já chegámos a ter 100. Agora, houve uma grande remodelação a nível ministerial. De acordo com os nossos estatutos podíamos acolher crianças a nível local, nacional e internacional. Mas cortaram-nos o nível nacional e internacional. Tivemos aqui crianças angolanas amputadas das minas, hemodialisados de S. Tomé e estão todos bem… Há cerca de três anos decidiram que só devíamos receber a nível local. E quem é que nos estão a mandar? Apenas jovens delinquentes, de 15 e 16 ou 17 anos. O primeiro jovem delinquente que recebemos tinha 17 anos e, passadas duas semanas, roubou a carrinha (já roubava desde dos 12), espatifou-a e agora vai ser julgado.

Podem influenciar os mais novos?

Estes jovens já têm vidas complicadas, de droga, fugas, de bater nos professores… Não digo todos, mas alguns estragam muito os outros. Porque os mais novos vieram por outros motivos: ou porque eram espancados em casa, ou porque os pais estavam hospitalizados, porque foram abandonados…Estes jovens pré-marginais têm, regularmente, atitudes de risco e isso tem sido um problema grave para nós.

O que pode ser feito?

O governo deve criar instituições próprias para estes jovens. Deve pensar noutro tipo de resposta e não misturar delinquentes com jovens que não o são.

Disse há pouco que acredita que cada pessoa tem uma centelha de bem.

Sim. Toda a gente. Sobretudo se lhe falarmos na mãe, em geral, desperta a tal centelha.

Mesmo quando são maltratados?

Sim.

Há muitos casos desses?

Há… todas as crianças estão aqui por motivos desses. Todas vêm por indicação do Tribunais de Famílias e de Menores.

Acha que há mais ou menos casos de crianças maltratadas?

Olhe, em relação a crianças eu acho que há muito mais. Mas, como querem retirar estes delinquentes das ruas, estão mandar-nos os delinquentes e as crianças estão a ser maltratadas em casa. Não quer dizer que se despreze estes jovens, mas têm que ser criadas outras respostas adequadas aos seus problemas.

Uma criança vítima de maus tratos pode ser um adulto feliz?

Pode. Tem que ser amado. Todos nós temos que ser amados senão não somos felizes. E a criança tem que se identificar… pode ser mais com a cozinheira do que comigo, mas tem que se identificar com alguém.

Já não é religiosa…

Há mais de 40 anos. Naquela altura as regras eram muito rígidas e não me permitiam que eu falasse sozinha com um homem. Ora, está a ver: eu no Instituto Superior de Serviço Social e não poder falar sozinha com o Vital Moreira ou com o Boaventura Sousa Santos?!. Então pensei: “eu sou livre. Se não me casei, Deus sabe porquê e eu também Não é agora que vou fazer coisas que não devo. Quero dar-me aos outros e não ter aqui um guarda a espiar-me…

Porque é que ainda a tratam por madre?

Olhe, porque pegou a moda. Eu já disse várias vezes que sou Maria Teresa Granado, sem madre ou irmã. Maria Teresa.

Deu tanto amor ao longo da sua vida. Sente que foi amada?

Sim. Pelas crianças, pelos jovens. E talvez por algum adulto. Mas sim, sinto que fui amada.

Nunca se arrependeu?

Nunca, nunca. Há momentos mais difíceis, porque as crianças são livres de escolha, mesmo de vida. É como um pai e uma mãe: gostariam que o filho tirasse o curso de Medicina, mas ele quer ser sapateiro. Mas é assim e temos que ficar felizes e aceitar.

É uma mulher feliz?

Sou. Gosto imenso de viver.

9 Comments

Leave a Reply

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

*

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.