Maló de Abreu: “O meu sonho foi o de restaurar as tradições”

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O primeiro presidente da Académica a vestir capa e batina depois do 25 de Abril confessa-se. Em 1979, Maló de Abreu “roubou” a direção da Associação Académica à esquerda. No ano a seguir presidiu à primeira Queima das Fitas após o luto académico. Estava cumprido o sonho de sempre.  

Como é que surgiu ligado à retoma das tradições académicas?

Vejamos. Quando, em 1974, vim para Coimbra, com 17 anos, a ideia que tinha construído em toda a minha vida, de uma Coimbra da capa e batina, da canção e da serenata, do Orfeon, da universidade, do futebol – onde o meu irmão tinha jogado – depressa se desvaneceu. Nesses anos, a academia decidia-se pelo confronto partidário, entre duas forças que definiam também a dicotomia do próprio país. Mas tenho de dizer que só me meti na vida associativa e nos movimentos políticos de juventude com o objetivo de contribuir para restaurar todos os meus sonhos de juventude, em relação a Coimbra. Muito do que foi a minha participação, nas comissões de curso da Faculdade de Medicina e, sobretudo, depois, como presidente da Académica, teve a ver com esse sonho.

O que eram as vivências académicas, quando estudava?

Não eram. Ou eram demasiado tímidas. Por exemplo, para fazer uma serenata era preciso muito cuidado e fazer tudo muito depressa e muito escondido, caso contrário era certo o confronto físico. Quem queria usar capa e batina tinha dificuldades e era perseguido. Para além disso, o futebol era o que sabemos. Até o Orfeon tinha desaparecido e foi já no meu tempo, em colaboração com o saudoso dr. Teixeira Santos, que regressou, com o Coro dos Antigos Orfeonistas. Também as secções na Académica, ligadas às tradições, como a Secção de Fado, começaram a ser preparadas, embora tenham arrancado já depois de mim.

É eleito presidente da Académica, numa lista da JSD, em 1979, quando Mota Pinto era primeiro-ministro…

Sim. Aliás, o prof. Mota Pinto, que era muito meu amigo e é uma das minhas referências políticas, viria a ajudar-me imenso nos primeiros tempos de presidente da Académica. E também o secretário de Estado da Cultura do governo dele, David Mourão Ferreira, em quem Mota Pinto delegou as negociações connosco.

As reformas na universidade, que vinham do tempo de Sottomayor Cardia, também contribuíram para a vitória da JSD, em 1979?

É verdade que estava já em curso uma grande mudança na universidade. E também é verdade é que nós fomos assim, de peito feito, para as eleições da Académica muito por causa dessa reforma, que repôs os órgãos diretivos e científicos e a assembleia de representantes eleitos. Foram todas essas eleições, nas faculdades, que nos deram muita força e que nos permitiram ir buscar muita gente que tinha já estado nessas lutas com sucesso.

Entretanto a AD ganhou as eleições nacionais e o ministro da Educação foi um professor de Coimbra…

Sim, o prof. Victor Crespo, que também foi um homem determinante para as nossas intenções. Tal como foi, em Coimbra, o governador civil de então, que era o dr. Carlos Encarnação, e o presidente da câmara. Mas também os jornais, como diário de Coimbra, com o Lino Vinhal, e o Comércio do Porto, com o Santos Martins e o Cabral de Oliveira.

Luto académico devia ter acabado em 74

Como conheceu Sá Carneiro?

É uma história muito curiosa, que eu conto pouco, mas que me marcou muito. Na noite em que eu ganho a Académica, o Sá Carneiro e a Natália Correia quiseram falar comigo, a sós. Foi no Choupal, pelo simbolismo e também por ser um local discreto, e, no fim, ele disse-me: é altura também de ganharmos o país; se ganhámos a Associação Académica é porque há muita gente aberta à mudança. É preciso ver que, nessa altura, a JSD apenas tinha ganho o Técnico, com o Carlos Pimenta. E a verdade é que, em Dezembro desse ano houve eleições e ganhou a Aliança Democrática.

Voltando à restauração das tradições…

Todo o processo de inversão do posicionamento da academia, face às tradições, processa-se em dois anos: o primeiro, em que fui presidente da Académica, e o segundo, em que fui presidente da primeira Comissão Central da Queima das Fitas. No primeiro ano, em 1979, preparámos o relançamento de todos os atos, por exemplo, com a realização da Semana Académica – que ainda não tinha o cortejo. Depois, com o sentimento do trabalho feito e com a sucessão garantida – fui eu que escolhi o meu sucessor, o Luís Teixeira, na direção geral –, e também porque acho que um ano é mais do que suficiente, avancei para a Queima das Fitas…

O Luto Académico devia ter acabado em 1974?

Claro. Mas, a luta política e a incompreensão que uma certa esquerda tinha das tradições académicas fizeram com que se mantivesse. Ainda há pouco tempo, o ex-reitor, prof. Seabra Santos, que foi um homem do PCP e da Brigada Victor Jara, admitiu que esse foi um dos grandes erros da esquerda, em Coimbra. É claro que há excessos, na praxe académica, como algum tipo de trupes ou aquela coisa de querer obrigar a que se use a capa e batina, mas, de uma forma geral, a tradição é muito positiva.

Na universidade, quem apoiou a mudança?

Houve muita gente importante e algumas pessoas determinantes, e não só na universidade. Desde logo, muitos antigos estudantes, que não tinham tido queima das fitas e que fizeram muita pressão. Depois, o reitor, prof. Ferrer Correia, que era um homem de esquerda, mas que nos apoiou, embora na sua forma muito cautelosa e muito ponderada de fazer as coisas. Por isso, de resto, todas as decisões que tomámos, no sentido da retoma das tradições, foram sempre muito negociadas e difíceis. Aliás, a Semana Académica foi um pouco como que uma sondagem. Ele temia um confronto sério, na academia…

A verdade é que houve confrontos…

Sim, mas nada de grave e, hoje, à distância, até dá para nos rirmos, de um lado e do outro. A maior parte até somos, agora, amigos…

A academia continua pouco aberta à cidade?

Sim. E eu só vejo a academia como ligada fortemente à cidade e à região. Os estudantes não podem ver a queima das fitas como um momento só deles. No meu tempo, fizemos uma festa muito tradicional porque tinha de ser assim mesmo, depois de uma década de vazio. Mas já nessa altura queria fazer algo diferente e sempre pensei que isso viesse a acontecer. Infelizmente, salvo coisas muito pontuais, a queima e as tradições continuam a ser muito fechadas.

Três décadas depois, o que (não) mudou em Coimbra?

Coimbra hoje não é liderante. As pessoas e as instituições são muito paroquiais, não gostam de perder espaço e têm muita dificuldade em dialogar. Isto quando precisamos de uma estratégia comum que nos fortaleça, que nos faça olhar para o que está à nossa volta, de modo a criarmos uma região forte, entre a Lisboa cada vez mais a olhar para o mundo e o Porto cada vez mais fechado sobre si próprio. Temos de aproveitar uma coisa que temos de positivo, em Coimbra: no fundo, todos nos damos bem. O que nos une consegue com facilidade ultrapassar todas as nossas diferenças.

O que falta, então?

Coimbra só tem força se houver um pacto de cidadania, entre todos os que, transitoriamente, ocupam cargos políticos, sociais e institucionais. A cidade fica, não pode, nunca, perder as suas raízes, mas tem de ser uma cidade de futuro. E é isso que não vejo. Coimbra tem de ter uma aposta forte nos jovens, na cultura, na investigação, nas empresas de ponta… eu acredito muito no Coimbra Inovação Parque, mas precisa de ser muito mais dinamizado.

O que fica de uma década de Encarnação?

O dr. Encarnação, em muitos aspetos, abriu muito a cidade, embora acredite que essa abertura poderia ter sido feita por outro ou até por outra força política. Mas, ao contrário do que dizem algumas vozes, o dr. Encarnação deu passos decisivos, para Coimbra e, agora, é preciso aprofundar toda a abertura conseguida e criar cada vez mais diálogo e espírito de união, dentro e fora da cidade.

Carlos Encarnação entrou na câmara na mesma altura em que o PSD regressou ao governo. O que ganhou Coimbra com essa convergência?

Uma coisa que temos de positivo, em Coimbra, é que, no fundo, todos nos damos bem. O que nos une consegue com facilidade ultrapassar todas as nossas diferenças.

Barbosa de Melo é o candidato natural da coligação

O caso do Metro Mondego diz o contrário…

Eu sou muito crítico, em relação a isso. Acho que foi criminoso o que fizeram e acho que a estação velha já há muito que se deveria ter resolvido. Mas também acho que as ligações rápidas e seguras a Viseu, sobretudo, mas também às outras cidades da região, deveriam ser uma realidade.

Barbosa de Melo é o candidato natural da atual maioria?

Eu não sou dirigente partidário e apenas tenho responsabilidades político-partidárias enquanto líder da bancada da maioria, na assembleia municipal. Mas, enfim, acho que o candidato natural da coligação é o Barbosa de Melo. Qualquer movimento noutro sentido é absolutamente errado e quem, dentro da maioria, entrar por esse caminho contribui para que fiquemos em sérios riscos de perder a câmara.

Que lhe parece a lista de candidatos a deputados do PSD?

Há uma coisa que era preciso ser feita e está meio resolvida, em Coimbra: era fundamental acabar com aqueles tempos em que as listas eram encabeçadas por alguém de fora. O PSD conseguiu, mas o PS não. E era bom que o fizesse, porque tem gente de Coimbra muito qualificada para isso. Quanto ao PSD, é uma lista que está feita e que, penso, é uma boa lista. O prof. Canavarro, o prof. Pedro Saraiva, o Nuno Encarnação, que vai em quarto, tal como há dois anos. Dos primeiros, só não conheço o número três, que julgo ser de Lisboa…

É um “tiro no pé” a entrada de Nilza Sousa?

Julgo que meter uma professora universitária, que tem com certeza muitas qualificações, mas que não tem, que eu saiba, qualquer ligação a Coimbra, é um erro grosseiro.

Em 1979/80 regressaram as tradições mas não se reintegrou o futebol. Porquê?

Como se sabe, nessa altura, havia o Clube Académico de Coimbra, longe da academia, embora presidido por um homem que sempre foi de diálogo e de integração, o eng. Jorge Anjinho. Agora, o que muita gente não saberá e, certamente, alguns dos que lá estão não sabem, é que fomos nós que lançámos o processo para trazer o futebol de novo à Académica. Foi connosco que aconteceu uma primeira aproximação simbólica, quando levámos a taça de 1939 à sede do CAC. Mas não foi fácil e a prova é que só cinco anos depois, em 1984, quando o Ricardo Roque era presidente da Académica, é que tudo se resolveu.

30 anos depois, o que falta, hoje, à Académica?

Muito. Mas o fundamental é termos uma Académica poderosa, que esteja sempre entre os cinco/seis primeiros do futebol português e que, de vez em quando, se possa intrometer entre os chamados grandes.

Mas está há 10 anos na 1.ª Liga…

Acho bem, mas acho pouco. A Académica também tem de ter a força de, com a força do futebol, ser capaz de aglutinar e arrastar outras entidades para que se tenha uma cidade melhor e uma região melhor. Ora, o que acho é que a atual direção, eu diria que o atual presidente, não tem essa capacidade e não pode ir mais longe.

É por isso que pondera voltar a ser candidato a presidente?

É uma questão que não se coloca, ainda, até porque as eleições não estão sequer marcadas. Mas, o que digo é que, assim como eu tive o sonho de restaurar as tradições académicas também tenho o sonho de fazer com que a Académica possa voltar a ser a dos anos 60 e 70. Uma Académica de top, com mais estudantes universitários, com jogadores que sejam referência enquanto cidadãos. Nada do que temos, hoje. A Académica tem menos de cinco mil sócios, perde assistências, não consegue levar os estudantes universitários, nem a própria cidade, ao estádio, não consegue ter gente de Coimbra que seja da Académica… Enfim, não funciona. É muito organismo autónomo de futebol e muito pouco Académica.

O futebol já nada tem a ver com o de antes…

Sim. Por isso o organismo autónomo de futebol tem sentido. Mas, em Coimbra, só tem sentido se for Académica.

O atual presidente quer um estádio novo…

O estádio pode ser rediscutido com a câmara, e julgo que, com facilidade, se resolverão algumas coisas. Mas, com um estádio destes, não me entra na cabeça, não julgo que tenha qualquer espécie de sentido, estar a pensar num novo estádio.

Como viu as críticas de Simões à câmara?

Não comento. Eu tenho uma perspetiva diferente, que é a de unir em vez de dividir. Por isso, tudo o que seja afastar é um erro grave, que, a prazo, se vai pagar.

Mantém ligações com os seus colegas do tempo da JSD?

Fui vice-presidente da JSD quatro anos e mantenho ligação muito próxima com algumas pessoas que são desse tempo, como Rui Rio, o João Carlos Cunha e Silva, que é primeiro vice-presidente do governo da Madeira, ambos vice-presidentes também, o José Pedro Aguiar Branco, da comissão política, e o próprio Pedro Passos, que era vogal da comissão política.

Acompanha Rui Rio nas propostas de reforma político-administrativa do Estado?

Sim. Ele é um defensor intransigente da reforma profunda do regime. Há erros grosseiros, como a Lei das Autarquias Locais, ao não contemplar executivos maioritários. Depois, claro, há os governos civis, que já deveriam ter acabado…

Ainda é contra a regionalização?

Sou a favor de uma estrutura intermédia e não fecho a porta à regionalização. Mas o caminho não dever ser o de diminuir o número de câmaras ou de freguesias, só por si, criando conflitos inevitáveis. Há que redesenhar o mapa autárquico, mas privilegiando a eficácia e eficiência e não optando por cortes cegos. Depois, sou a favor de juntar todos os serviços regionais do Estado. E, já agora, perceber que o que se fez, espalhando direções regionais por Aveiro, Castelo Branco ou Viseu, foi andar a brincar à política, para fazer uns favores que não fazem sentido…

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