“Uma das coisas que aprendi viajando é a relativizar tudo”

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Gonçalo Cadilhe é pioneiro em Portugal nas reportagens sobre viagens. O mundo é o local de trabalho e a casa do viajante e jornalista figueirense, licenciado em Gestão de Empresas.

Que idade tinha quando agarrou na mochila e partiu à descoberta do mundo?

Tinha oito anos, foi quando entrei para os escuteiros. Pus a mochila às costas pela primeira vez e passei o meu primeiro fim de semana fora de casa no adro da igreja de Cantanhede. Para mim, foi mais revolucionário do que aos 35 atravessar o Afeganistão. Foi um momento fundamental na minha vida. Foi tão revolucionário, tão marcante, que ainda hoje recordo quase todos os minutos desse fim de semana. Estávamos em maio ou junho de 1977. Essa foi a primeira vez que senti que parti à descoberta do mundo. A partir dos 15, comecei a viajar com a prancha debaixo do braço, à procura das ondas consideradas as melhores do mundo.

Como correu a primeira viagem como cronista?

A minha primeira viagem com o intuito de publicar uma reportagem foi em 1990, a França, tinha 17 anos. Já na universidade, parti para a África do Sul, como surfista, mas com atenção ao pormenor sobre o que poderia tirar para ser publicado. Um ano depois, viajei pela América Central e consegui publicar a primeira crónica, em fevereiro de 1992.

Que meios de transporte utiliza nas suas viagens?

O meio de transporte que melhor transmite a sensação da viagem. Nesse aspeto, de facto, o avião é o mais infeliz, e eu raramente o utilizo. Aliás, há projetos onde está proibido o transporte aéreo. Ou seja, uso o meio de transporte que melhor simboliza e projeta o território onde estou.

Prepara meticulosa e minuciosamente as suas viagens?

Cada viagem é um projeto específico, pré-acordado com o “Expresso” ou com o canal de televisão onde será exibido o documentário. Há projetos para os quais parto com tudo meticulosamente preparado e há outros – como, por exemplo, na travessia de África, porque é um continente imprevisível, não levava nada preparado – em que tomo as decisões dia a dia.

Que leva na sua bagagem?

Levo sempre o cartão de crédito, nem que seja para comprar uma passagem aérea para sair do país, se começarem aos tiros.

Isso já lhe aconteceu?

Ter de abandonar o país, não. Já aconteceu, no Afeganistão, ter de alterar radicalmente os planos.

Além do cartão de crédito, que leva mais na mochila?

Levo o computador (com ligação à Internet) e a máquina fotográfica digital. Uma coisa que nunca falta, e que representa metade do peso da minha mochila, são os livros.

Onde é que fica hospedado nas suas viagens?

Cada caso é um caso. Voltando ao exemplo de África, dormi na berma da estrada porque o camião em que apanhei boleia não tinha faróis para viajar à noite. Noutros casos, quando levo uma equipa de filmagens, tem de haver maior segurança, por causa do material, que também precisa de carregar as baterias, e aí terá que ser um hotel com alguma dignidade.

Que música ouve quando viaja?

A dos países onde estou.

Come nas cadeias internacionais, ou prefere a gastronomia local?

A única vez que entrei no MacDonalds foi para ir ao quarto de banho, na Guatemala (risos). Como comida local, aquela que me parece mais inócua.

Em média, quantos dias viaja por ano?

Na volta ao mundo sem aviões, que depois resultou no livro “Hemisfério Pessoal”, estive 19 meses fora do país. Não quer dizer que seja de janeiro a janeiro… Este caso mais recente – a viagem baseada na obra “A Peregrinação”, de Fernão Mendes Pinto – é atípico, porque estou a ir e a voltar constantemente. Tanto posso estar nove meses fora como passar um ano inteiro cá a preparar outros projetos.

A recriação da viagem de Fernão Mendes Pinto confirma que ele não era “Fernão Mendes Minto”?

Todos os estudos realizados ao longo do século XX confirmam que ele, afinal, não mentia. Limito-me a comparar esses estudos e ir por onde ele andou.

Quantos países conhece?

(Silêncio). É uma pergunta ingrata, porque há uma série de lugares, devido ao esforço que me deu chegar lá, que equivaleria a visitar, sei lá, uns cinco países. Um deles é a ilha da Páscoa, um dos lugares mais isolados do mundo, que não conta como país porque é um território que pertence ao Chile, apesar de estar no meio do nada. A Polinésia Francesa… Porquê francesa? Porque é uma questão colonial, mas está longe da França como nós estamos longe do Havai ou do Alasca… Concluindo, a questão do número de países é ingrata. No entanto, acho que devo conhecer mais de uma centena.

O mundo é tão pequeno como dizem?

O mundo está a ficar muito pequeno. Se eu vou para a China e encontro um chinês que fala inglês, eu dei a volta ao mundo para encontrar na China um indivíduo que está formatado no mesmo universo cultural em que me encontro. Portanto, o mundo é mesmo pequeno.

Repete itinerários?

Costumo repetir itinerários porque há sítios que não chega uma vida para os visitar. Nestes últimos anos tenho-me dedicado aos navegantes portugueses, e vou sempre parar aos mesmos cruzamentos – Goa, Malaca, Macau… – , geralmente como ponto de partida para rotas específicas.

Qual foi a viagem mais marcante?

(Silêncio). Espero sempre que seja a próxima.

E a mais perigosa?

Deve ter sido uma viagem feita a um sábado à noite numa estrada portuguesa com a malta a conduzir cheia de copos e de drogas e a pôr a vida de inocentes em perigo. Continuo a achar que, aos sábados à noite, as estradas portuguesas são dos sítios mais perigosos do mundo, e parece que nem o FMI vai alterar isso…

Mais perigosas do que atravessar o continente africano?

Claro! Quando o viajante está sozinho num lugar que desconhece, tem as defesas todas em alerta, e então está muito mais protegido. Mais depressa sou assaltado por um carteirista no Metro de Lisboa do que no continente africano ou asiático.

Já foi assaltado?

Sim… no Metro de Lisboa.

Tem um país ou sítio de que goste particularmente?

Isso é como perguntar a uma criança se gosta mais do pai ou da mãe. Gosto muito da América do Sul, do lado do Pacífico, incluindo a Patagónia (na Argentina), da África Austral e da Europa. Penso que o lugar mais fascinante do mundo é o nosso passado (Europa). Gosto imenso de viajar pela Europa, por todo esse diálogo com o passado que outras regiões do mundo não permitem.

Como consegue conciliar a sua vida familiar com as viagens?

Há 20 anos que ando nisto. Portanto, o que eu faço é a minha vida.

É casado, tem filhos?

Não. São opções. Como se costuma dizer, não podemos ter o mesmo pé em duas botas.

Uma viagem que ainda não fez mas que gostava de fazer…

Há muitas, e não têm tanto a ver com o destino em si, mas sim com a idade. Isto é, há muitas viagens que ainda não fiz porque ainda não tenho idade para as fazer. Quero voltar a alguns dos lugares onde já estive e olhar para eles com outra perspetiva.

Que notoriedade tem Portugal no mundo, para lá das fronteiras da lusofonia?

(Portugal) é um dos países mais pequenos e ignorados do mundo. Só mesmo quem tiver educação superior poderá chegar ao conceito, à ideia de pátria portuguesa. Nos países onde o futebol é importante, Portugal é conhecido pelos seus jogadores. Mas basta chegar a África do Sul ou aos Estados Unidos, por exemplo, onde o futebol conta pouco, e não há notoriedade nenhuma.

Sente saudades de Portugal, sente-se mais português, quando se encontra fora do país?

Não posso dizer que sinto saudades, porque elas impedem um trabalho bem feito. Ou seja, estar a pensar no regresso ou noutro lugar retira concentração. Em relação a sentir-me mais português, isso é algo que eu combato, porque perdemos a objetividade quando nos deixamos levar por sentimentalismos.

Que visão do mundo, da vida e das pessoas as viagens lhe têm proporcionado?

Uma das coisas que eu aprendi viajando pelo mundo é relativizar tudo. Essa é a primeira grande lição que mudou a minha vida. E há outra que também é importante: em termos globais, são mais as semelhanças que nos unem do que as diferenças que nos separam.

Se pudesse convidar uma figura histórica para viajar consigo, sobre quem recairia a escolha?

A Sofia Loren dos anos 50 (risos).

Quando está no estrangeiro, diz que é da Figueira da Foz ou de Coimbra?

Digo que sou do Porto. Coimbra não serve, não chega ao mundo. É muito difícil que a partir de Coimbra consigam perceber de onde sou. E depois tem outra vantagem: toda a gente conhece o Futebol Clube do Porto.

Qual vai ser a sua próxima viagem?

“A Peregrinação”, que ainda não concluí, sobre a qual ando a fazer uma investigação para avançar com um livro.

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