Ó se é, senhora Ângela

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Francisco Queirós

Eu sou do tempo em que até os milagres eram caseiros. Por toda a parte havia santos devidamente integrados e próximos das populações. Terra que se prezava tinha a sua Senhora própria, numa adaptação local da . E o povo adorava a sua Senhora do Ó, dos Aflitos ou dos Navegantes. Reis, rainhas e poderosos eram santificados pelos homens, vá-se lá saber porquê, ou sabemo-lo, mas não nos afastemos da nossa rota…

Já nem a hagiologia resiste à globalização e à empresarialização da vida, da humana ou da outra. É certo que sempre houve a esse propósito discussões internacionais – afinal Santo António de onde era, de Pádua ou de Lisboa? Valha a verdade – morou nos Olivais. Acrescente-se ainda, para mais ampla percepção do fenómeno, que não é de hoje o dito “santos da casa não fazem milagres”. Assim, devidamente posta a problemática da santidade, talvez se entenda a profecia que leio nos jornais: “destino de Portugal deve ficar traçado em Maio”.

Qual Nostradamus, o The Economist profetiza, esclarecendo que o destino dos portugueses é traçado na cimeira europeia de Março. Mas como nestas coisas de revelação dos desígnios sagrados há que manter um inquebrável ritual litúrgico, o ungido é chamado à santa que lhe confidencia o segredo a revelar ao mundo em momento mais solene. E assim, lá parte o primeiro-ministro a caminho de Berlim. A chamado da chanceler da Europa, o triste governante (masculino de governanta) escutará contrito os mistérios que lhe não só são destinados como impostos. Depois, regresso ao lar, qual pastorinho, revelará partes do segredo. A revelação total guardá-la-á, conforme as rigorosas instruções, para a Cimeira de Março. E assim se cumprirá o destino colectivo de um povo. Não sonhado por si. Isso não! Não por si construído. Isso também não! Antes definido num concílio de divindades sobre a direcção da Senhora Ângela, chanceler da Europa, e imposto a um povo inteiro. E pronto! Está feito o arranjinho.

“Destino de Portugal deve ficar traçado em Março”! Ao ler a profecia, sorrio. Levará em conta o protesto nacional de 19 de Março? Assim como assim, os povos têm vontades! Recordo o poeta Joaquim Pessoa e o seu Poema Temperamental que por decoro não reproduzo em crónica de santos assuntos – fica a semente da tentação para a sua leitura! “Falta mudar tanta coisa. /Falta mudar isto tudo! / Ser-se cego surdo e mudo/entre gente sem cabeça/ não é desgraça completa. / É como ser-se poeta/ sem que a poesia aconteça. (…) Há gente que não se importa/ de viver feita aos bocados/com uma alma tão morta/que os mortos berram à porta/ dos vivos que estão calados.” Ó se é! Ó se é!

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