Miguel Seabra: “Em Coimbra encontramos um público caloroso, concentrado e disponível”

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Em abril, o Teatro Meridional recebe, em S. Petersburgo, o Prémio Europa Novas Realidades Teatrais. É a primeira vez que o prémio mais significativo do teatro europeu vem para Portugal. O Teatro Meridional esteve em Coimbra e o DIÁRIO AS BEIRAS falou com Miguel Seabra, o diretor do grupo.

Que significado teve a residência artística em Coimbra, a convite d’A Escola da Noite?

A vida é feita de ciclos. E há momentos em que vários fatores se conjugam de uma forma feliz. Este foi, sem dúvida, um momento privilegiado no percurso do Teatro Meridional, por várias razões. Entre elas, o facto de haver a possibilidade de uma proximidade efetiva com o projeto d’A Escola da Noite, com as pessoas que o fazem. Possibilidade que veio confirmar a proximidade profissional entre os dois projetos, ao nível da maneira de estar, da atitude para com esta arte, com este envolvimento cultural.

Proximidade entre os dois projetos de que já havia alguma ideia?

A Escola da Noite e o Teatro Meridional são duas companhias que nasceram no mesmo ano [1992] e somos duas companhias que, com mais algumas e um pouco por todo o país, fazem parte da geração de 90 que, depois da geração de 70, quando surgiram as primeiras grandes companhias de teatro em Portugal, principalmente no pós-25 de Abril – o Bando nasceu em 1974, embora a Cornucópia e a Comuna sejam prévias –, conseguiu erigir projetos consistentes, continuados e que trabalham para fazer mais futuro.

Voltando à residência em Coimbra…

Que teve como ponto de referência estruturante essa possibilidade de proximidade com o projeto d’A Escola da Noite. Embora fosse uma mostra do processo de trabalho do Teatro Meridional, a proximidade foi extraordinária. Não conhecendo tão bem e mutuamente os projetos, posso dizer que os processos de trabalho têm pontos em comum, embora com objetivos de repertório feitos por caminhos diferentes. Mas resistir é vencer. A Escola da Noite é uma resistente e o Teatro Meridional também.

O Teatro Meridional trouxe três espetáculos muito diferentes, mas a dizerem muito sobre o percurso da companhia?

Tivemos a possibilidade de mostrar três espetáculos – “Contos em viagem – Cabo Verde”, “Portugal dos poetas” e “1974” – com características muito diferentes, que, de facto, dão a conhecer muito do que é o Teatro Meridional. Mas tivemos também a oportunidade de mostrar uma exposição com 600 fotografias, optando por um formato digital que é ainda muito pouco comum, fruto de um trabalho também de grande proximidade com a fotógrafa Susana Paiva, que é de Coimbra.

E que, no início do projeto, teve esse mesmo trabalho com A Escola da Noite?

Sim. Teve essa proximidade com A Escola da Noite, num percurso que depois seguiu diferentes e importantes direções. Neste caso, a mostra de fotografia resulta do trabalho de acompanhamento de três meses de ensaios deste último espetáculo do Teatro Meridional, “1974”, uma co-produção com o Teatro Nacional D. Maria II. E estamos, a Susana e eu, muito felizes com o resultado do trabalho, porque normalmente não se cuida muito da arte da fotografia em teatro, coisa que A Escola da Noite, através do Augusto Baptista tem conseguido. Mas também mostramos em estreia mundial o vídeo documentário do processo de trabalho da construção de “1974”, naquele que foi igualmente um momento surpreendente. Eu tive ainda a possibilidade de, no espaço bonito da companhia Bonifrates, partilhar um workshop com 12 atores.

Aconteceu também uma conversa com alunos da ESEC?

Já fora do âmbito da residência, depois de ser convidado, desafiado, por Clóvis Levi para ir à Escola Superior de Educação de Coimbra falar com os alunos do curso de teatro. Em cinco dias aconteceu muita coisa e correu tudo muito bem. Para uma companhia de teatro com 18 anos, é uma felicidade fazer um resumo a olhar para o seu próprio percurso, ter a possibilidade de questionar, por em causa e sentir que pode amar-se enquanto companhia, percebendo que o projeto está vivo, é dinâmico, é saudável porque se questiona permanentemente, o que é uma coisa fundamental em teatro. Para não anquilosar. No fundo, o amanhã está aqui para continuar o caminho. Este foi o fecho de um ciclo de uma forma privilegiada e muito feliz.

Feliz também, por ter acontecido com salas cheias?

Foi muito bom perceber as salas cheias. Sentir que, para lá do nome da companhia e da credibilidade da residência, é um trabalho de base da produção d’A Escola da Noite em Coimbra que está a dar frutos, com um público muito caloroso, muito concentrado, muito atento, muito disponível para dar e receber. E isto é gratificante.

Ao encontro de todos estes interlocutores, público, atores, alunos. Todos fundamentais?

Fundamental é estarmos aqui a falar. Fundamental são as pessoas. Mas sabe que eu, particularmente, sou muito duro e um pouco desagradável a falar com alunos de teatro. Sinto-me um desmotivador profissional, ao contrário do que poderia parecer mais lógico.

É preciso mostrar-lhes a dureza da escolha?

Estar no teatro é uma forma de estar na vida, não é uma profissão. É o primeiro ponto em que eu insisto. Não pensem que vêm para aqui ganhar dinheiro ou fazer um horário das nove às cinco. Se assim for, estão completamente enganados. Depois, não há nada pior, em qualquer profissão, mas no teatro em particular porque as relações se baseiam em processos de relacionamento emocional e racional muito intensos, não há nada pior do que ter pessoas medíocres a trabalhar connosco. Dá muito trabalho, é muito desconcertante, é muito desgastante e, portanto, não resulta. É preciso ter uma preparação humana particular. E este particular não significa que só vai para o teatro quem é especial de corrida. Não. É as pessoas perceberem que, nesta via de vida, tem de se estar porque se quer, porque se escolhe, porque se acredita. Em última análise, porque nos preparamos constantemente para contar histórias aos outros. E temos de cuidar muito das histórias que contamos, para cuidar muito das pessoas. E isso convém que seja inteiro, verdadeiro.

E para isso é preciso estar disponível?

Estar disponível. E é muito complicado estar sempre disponível. Tem de se treinar sempre. Treinar e alimentar esse músculo.

Neste processo, qual é o papel das escolas de teatro?

Um papel preponderante na edificação do tecido futuro do teatro em Portugal. Mas, hoje, há muitas escolas que vendem gato por lebre. Aproveita-se muito a ambição, a ansiedade e a vontade de êxito das pessoas. E o Estado, em particular, pode ter uma influência decisiva e muito melhor conseguida ao perceber que os cursos de teatro têm uma especificidade muito própria e não se pode incentivar pessoas a estar três anos iludidas, para depois entrar num mercado de trabalho que é muito seletivo.

E sem complacências?

Sem complacências, porque é muito radical nessa seletividade. O Estado devia olhar para as escolas de teatro e proporcionar condições que não sejam as de financiar por via do número de alunos que os cursos têm. E este é um erro trágico.

“1974”. O título diz muito, mas o espetáculo significa muito mais. Esta é uma reflexão sobre o que somos?

Este trabalho resultou de um convite do Diogo Infante, diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria II, para se criar um trabalho de raiz. Entendi, juntamente com a Natália Luíza, refletir sobre a identidade portuguesa. É um desafio fascinante, é um risco enorme. E eu pensei na história recente portuguesa, que atravessou um antes e um depois do 25 de Abril. Antes, uma ditadura que foi a mais longa na Europa do século XX, que proporcionou a mais longa guerra em que um país europeu se viu envolvido também no século XX. Chegamos ao 25 de Abril que é um ponto de rutura, com um depois num país que esteve 12 anos até entrar na Comunidade Europeia. Para além de sermos a periferia geográfica, a ditadura fez-nos estar calados e isolados do resto do mundo, acentuando essa periferia. Agora, há ainda pouco tempo de democracia, há ainda uma certa imaturidade cívica. “1974”, porque data histórica, momento muito importante na história recente portuguesa. Este espetáculo reflete sobre a efemeridade de um sonho: havia toda a esperança do mundo [como agora no Egito] e parece ter-se desvanecido.

Há uma forma meridional de fazer teatro?

Eu creio que sim. Há uma maneira de estar. Há processos de trabalho que se cultivam, porque se acredita neles. Sim, há uma identidade artística e humana neste projeto. Se eu escolhesse algumas palavras para descrever as características estruturais seriam as seguintes: simplicidade, rigor, subtileza e abraço.

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