“O estudo de reorganização da rede do ensino particular foi encomendado”

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Foto Luís Carregã

Foi durante o período em que ocupou o cargo de diretor regional de Educação que muitos dos contratos de associação com as escolas do ensino particular e cooperativo foram efetuados. Havia necessidade de os celebrar?

Não foi uma necessidade, foi um sufoco com que nos deparámos inesperadamente.

Porquê sufoco?

Porque me vi confrontado com um défice enorme de salas para os alunos que, naquela altura, chegavam ao sistema. A Lei de Bases aumentou em 1986 a escolaridade obrigatória de seis para nove anos. A sua chegada ao sistema acontece precisamente na década de 90. Isso obrigou a encontrar respostas imediatas para problemas que tinham de ser resolvidos sem adiamento.

Está a querer dizer que as escolas públicas, nessa altura, não tinham condições para acolher este acréscimo de alunos?

Estavam a rebentar pelas costuras. Exemplo: em Leiria, a Escola Secundária Rodrigues Lobo tinha aulas nos corredores. Tivemos de correr a cidade de lés a lés para ver se era possível encontrar espaços. Recordo-me, perfeitamente, que foi muito difícil encontrar uma solução porque, nesta altura, os contratos celebrados não abrangiam as zonas urbanas. A solução acabou por ser o Colégio Conciliar da Imaculada Conceição.

Solução, porquê?

Porque fui informado de que os responsáveis se preparavam para vender o edifício, devido ao acumular de prejuízos. Conversei com eles e posteriormente com o secretário de Estado para encontrarmos a melhor solução. E a opção, até por sugestão do governante da altura, foi a assinatura de um contrato de associação com aquele estabelecimento de ensino. O que aconteceu pela primeira vez em meio urbano.

Desta forma abriu-se um precedente, não?

Aberto este precedente, outros se seguiram. Até mesmo em Coimbra. Deixe-me dizer-lhe que nunca encontrei, da parte do Governo, qualquer tipo de entrave a esta situação. Até porque o ensino privado é muito mais barato para o Estado do que o público. Porque não investimos na construção, no apetrechamento do estabelecimento de ensino. Há toda uma série de despesas que, automaticamente, são assumidas pelos investidores.

Tal não significa a privatização do ensino?

Não. Seria privatização se nós defendessemos, por exemplo, o fim das escolas públicas. O que não está, como se viu, em causa. O que eu queria, com estas decisões, é que o ensino público funcionasse bem. E, infelizmente, não funcionam tão bem como algumas escolas privadas porque não têm a mesma autonomia nem a mesma responsabilidade. No ensino público, a falta de autonomia impede a responsabilização das escolas, o que gera uma certa inimputabilidade.

Porque é que diz isso?

Um exemplo claro: numa escola pública, se chumbarem 30 ou 40 por cento dos alunos, não há problema; mas se tal acontecesse numa escola privada, isso teria consequências imediatas. Existe um acompanhamento de proximidade que procura as soluções adequadas. O poder e capacidade de decisão estão no interior da escola. A tendência mundial, neste momento, vai no sentido da descentralização da educação e isso é mais fácil nas escolas privadas.

É possível explicar melhor o que quer dizer com descentralização?

Trata-se de transferir as competências de gestão e organização das escolas do centro para a periferia. Tudo o que pode ser resolvido nas escolas não precisa de esperar pelas decisões superiores. Trata-se de fazer da escola o centro privilegiado das políticas educativas. Isto não se compadece com este megaministério, onde tudo se decide. A palavra mega – megaministério, megaagrupamento, megaescola – traduz uma hipertrofia pouco saudável e que não favorece a melhoria da qualidade da educação. Ao definir as orientações sobre a carta educativa, o próprio ME introduz as preocupações com a dimensão-padrão da escola. Por outro lado, um excesso de alunos em pouco espaço gera problemas, nomeadamente de indisciplina, mais difíceis de gerir. Construir ou ampliar escolas onde existe excesso de oferta, ou aumentar excessivamente o número de alunos sem aumentar o espaço, não será o melhor caminho. Não se entende que, em Coimbra, havendo excesso de oferta, se tivesse decidido ampliar escolas como o Dona Maria e Avelar Brotero.

Está a colocar em causa as obras recentemente feitas naqueles dois estabelecimentos de ensino?

Nada disso. O Dona Maria e a Avelar Brotero precisariam de remodelação, mas é preciso perguntar se a dimensão-padrão está a ser respeitada ou se estamos a construir escolas de uma dimensão ingovernável ou, inclusivé, se estamos a respeitar o espaço por aluno. Os alunos devem estar num espaço onde se sintam confortáveis, para não se agredirem, para não aumentar o risco de indisciplina. Tudo isto tem a ver com a qualidade de ensino e da escola.

Qualidade de ensino que, na sua opinião, foi o símbolo distintivo das escolas particulares?

Eu não digo que todas estas escolas são perfeitas, porque quando falamos nos fatores que distinguem uma boa escola temos de apontar vários casos. De um modo geral, os colégios que têm surgido ultimamente obedecem a todos os requisitos, a todas as normas de construção. Mesmo os mais antigos têm-se expandido e criado o espaço necessário para os alunos que têm. Esta correlação é fundamental.

Nove contratos. Era necessário?

Centrando-nos de novo em Coimbra, eram necessários tantos contratos de associação com escolas particulares na zona urbana da cidade?

Note-se uma coisa: na altura dos contratos de associação não havia tantas escolas. Os colégios não nasceram perto de escolas públicas. O contrário é que tem acontecido, ou seja, as escolas públicas é que têm nascido junto dos colégios. Esse é que é o grande erro. Se, neste momento, temos excesso de oferta em Coimbra, porque é que o ministério insiste em construir salas onde elas não são necessárias e onde já tem a oferta preenchida?

De que escolas está a falar?

Por exemplo, da escola de Ceira. Sempre se contestou que fosse ali o local ideal para a sua construção. A própria Escola EB 2,3 Inês de Castro, em S. Martinho do Bispo, sofreu muito com o afastamento. São escolas que não se inseriram nas respetivas comunidades. O ideal é que se construa uma escola no interior da população que serve. Neste momento, para esvaziar os colégios de Coimbra obrigamo-los a ir para Ceira? Ou para S. Martinho do Bispo? Claro que não. As pessoas que já estão no centro querem continuar aí e não deslocar-se para as periferias.

Nessa declaração tem implícita uma crítica ao estudo de reorganização da rede do ensino particular e cooperativo com contrato de associação apresentado recentemente. Porquê?

Foi claramente um estudo encomendado com determinado objetivo, para justificar medidas que já tinham sido decididas. É um estudo que não honra nem a Universidade de Coimbra nem o Ministério da Educação. Neste estudo, por exemplo, a palavra qualidade é desconhecida, os compromissos do ministério e do Estado são desconhecidos ou, até mesmo, ignorados. Há toda uma série de questões que não são abordadas.

Porque é que diz que estamos perante um estudo encomendado?

As decisões do ministério surgem em dezembro de 2010, primeiro através de decreto-lei e depois por portaria. Aparece aí a justificação desse estudo. Mas não se diz que o estudo tem de analisar a qualidade das escolas e as condições concretas para que haja uma melhoria da educação. Isso não interessa. O que interessa é deslocar turmas do privado para o público. É uma decisão que não só agrava a crise económica que seria suposto atenuar como compromete a qualidade da educação.

Mas as medidas anunciadas não têm em vista a diminuição de custos?

Esse é o pretexto mas todos sabemos que as motivações são bem diferentes. Os custos agravam-se por várias razões.

Que razões são essas?

Na verdade, deslocar os alunos para as escolas públicas – é isso que está previsto no estudo – obriga à construção de novas escolas, que muitas vezes não são necessárias.

Mas ainda há bocado disse que havia excesso de oferta na cidade?

Há localidades onde se estão a construir escolas em que a rede dá resposta só com o atual ensino público. Tudo porque as câmaras conseguem construir escolas com fundos de diversas proveniências e investem sem necessidade. O estudo deveria olhar para estas situações. Ao contrário do que alguns afirmam, o desperdício em educação não vem do ensino privado mas do ensino público, a começar pelo próprio ministério.

Porquê?

Se o ministério constrói e amplia escolas onde existe excesso de oferta, deslocando os alunos para essas escola vai ser obrigado a contratar mais professores e pagar a segurança social dos docentes que vai despedir no ensino privado. Eu pergunto: que economia é que resulta destas medidas do Governo? Na minha perspetiva, só agravam a situação.

Quando há bocado referiu que o estudo era encomendado, quis dizer que os resultados já eram conhecidos?

Os resultados, não digo. Aliás, o estudo, em termos estatísticos, tem interesse pois dá-nos um diagnóstico muito preciso sobre algumas questões e que merecem ser analisadas. Mas o que me deixa dúvidas é que o estudo nunca propõe uma análise da rede instalada num determinado município, mas sempre a deslocalização de alunos do privado para o público sem se preocupar com a qualidade do ensino ministrado e sem ouvir os primeiros interessados: os pais.

O que não está de acordo com as condições necessárias para que haja uma boa escola?

Uma boa escola, hoje, é aquela que é capaz de ver os alunos como pessoas e organizar o trabalho escolar em torno das pessoas e das suas motivações. As escolas de sucesso são as que investem nas pessoas, nas suas virtudes, que incutem o respeito pelos outros, pelas hierarquias, o sentido do dever e do trabalho. Quando uma escola consegue incutir estes valores, automaticamente está a fazer bons homens. Ao passo que as escolas que só se preocupam com os resultados, com as matérias e com os conhecimentos, podem falhar esse objetivo. A primeira finalidade da educação é formar cidadãos autónomos, livres e independentes. Se isto falhar, tudo falha.

Mas o problema é do atual ministério?

Não, já vem de anteriores. Aliás, o primeiro problema gravíssimo do nosso Ministério da Educação tem a ver com a sua dimensão, com o megaministério já referido. Esse é o primeiro fator de desperdício. Quando nós temos um ministério com 10 mil funcionários, isso representa, em termos de custos anuais, à volta de 350 milhões de euros. Isto é um verdadeiro desperdício. A tendência atual não é ter ministérios com este tamanho, mas ter ministérios reduzidos (50 a 100 pessoas) e que conseguem fazer uma gestão da educação assente na autonomia e responsabilidade das escolas, transferindo para estas todas as competências que lhes cabem.

O que é que isso significa?

Significa que o ministério estaria dispensado de ter uma boa parte do trabalho que hoje tem. O Norte da Europa deve ser, para nós, um verdadeiro exemplo, já que o Ministério da Educação é constituído por poucas pessoas. Aqui, em Portugal, aposta-se em proporções desmedidas a todos os níveis. Tudo isto distorce e constrói unidades que não favorecem nada a qualidade e não permitem a melhoria das aprendizagens.

Custo apresentado agora é mais baixo do que o de 2008?

O valor estipulado pelo ministério e previsto no decreto-lei para os novos contratos de associação não é suficiente para as escolas com contrato de associação?

Para funcionar mal, certamente chegaria. Resta saber se chegaria para funcionar bem.

Uma das acusações que é feita a estes colégios é que, durante muitos anos, ganharam muito dinheiro com estes contratos. Concorda?

Admito que sim. E, como tal, é necessário rever a verba a atribuir. Mas nós temos indicadores, que o ministério também tem. Esta hipocrisia de esconder os números não faz o mínimo sentido. A ex-ministra Maria de Lurdes Rodrigues indicou em Abril de 2008 o custo de cada aluno /ano desde o 1.º até ao 12.º ano de escolaridade. O valor ronda os cinco mil euros. Sabendo nós que a tendência na educação é para o aumento dos custos e não para a diminuição, eu pergunto como é que agora o custo apresentado é mais baixo do que aquele que foi dado em 2008? E é aqui que o ministério tem de dar explicações.

Sabendo que o tempo é de dificuldades financeiras, não admite que os novos contratos não deveriam refletir essa realidade?

Claro que admito. Mas que a decisão seja tomada por uma comissão especializada e credenciada para o fazer. Aliás, a Assembleia da República acaba de entregar essa responsabilidade ao Tribunal de Contas. Por aquilo que eu conheço do presidente, com quem trabalhei enquanto secretário de Estado da Educação, espero que a questão entre no bom caminho. Aí, sim, pode-se encontrar a medida exata do que deve ser dado às escolas públicas e às privadas. Nós estamos aqui a fazer uma guerra entre escolas públicas e privadas totalmente desnecessária. Assiste-se a uma desestabilização que só prejudica o clima que nós devemos viver na área da educação. Todas as escolas, sejam elas públicas ou privadas, devem ter as condições necessárias – de autonomia e responsabilidade – para o exercício das suas funções.

Que comentário lhe merece a afirmação, inscrita no estudo, de que os estabelecimentos públicos e privados coincidem no mesmo território e, como tal, isso leva ao esvaziamento de alguns equipamentos públicos?

Isso é indicativo das políticas erradas que se preconizam no estudo. Porque se são as escolas privadas que esvaziam as escolas públicas isto significa apenas que as escolas públicas têm de adotar uma matriz de organização e funcionamento diferente. Ou seja: mais descentralização, mais autonomia, mais responsabilidade, mais controle de custos. E isso não está a ser feito. E portanto quando este estudo propõe a deslocação do ensino privado para o público, porque é que não defende o contrário nos locais onde a rede pública funciona mal. O ministério tem de pagar o mesmo.

Por outro lado, no estudo, defende-se que as escolas particulares têm surgido na área de maior dinamismo sócio-económico. Concorda com esta opinião?

É uma indicação interessante de ver. Mas tal só mostra que o ensino privado, quando surge, surge após estudos muito concretos – sob pena de não ser aceite – e corresponde a necessidades próprias das populações. Se assim não for está condenado ao fracasso. No ensino público, nem sempre é assim. É preciso ter em atenção todos os indicadores, o que não aconteceu com este estudo. O documento fez tábua rasa de tudo o que é o histórico das negociações e do que foram as posições das comunidades e das autarquias.

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