As culturas deslizam, tanto ou mais do que as cerros sob as chuvas torrenciais. Nestas semanas de tanta desgraça humana provocada pelas chuvas diluvianas, pode parecer uma ideia de mau gosto, e em certo sentido é, mas noutro não.
Porque as culturas deslizam, às vezes de maneira dramática e repentina, como nas revoluções, outras, de modo subtil e invisível, como se nada fosse. Não sei qual das duas formas de mudança produz transformações maiores. Há revoluções de grande estardalhaço político e social onde, passado tempo, tudo volta ao mesmo, embora com outra cara. Há contudo mudanças silenciosas em que, sob a aparente imobilidade, tudo se alterou radicalmente.
São evidentes as mudanças dos nossos últimos quarenta anos, na saúde, na assistência, no ensino generalizado, na qualificação geral da população, no nível de vida, no acesso aos bens básicos. Foi uma mudança em que muitos insistem em não reparar e que, contudo, é enorme. De um dia para o outro, com a revolução, parecia que tudo se ia alterar radicalmente, mas de facto, o que ficou? O mais importante não foi a agitação mas o que fomos conseguindo transformar nas instituições e nas pessoas.
Reparem como o mundo se tem vindo a tornar virtual, dir-se-ia que há um processo de virtualização geral, que parece sem retorno, mas que não se percebe como poderá continuar indefinidamente por esta via. Todos sentimos, sem compreender bem, a crise mundial, porque a economia se foi transformando em algo cada vez mais virtual, isto é, mais afastada do trabalho e dos produtos que dele resultam. E os investidores, com dinheiro muitas vezes virtual, entram em jogos de compra e venda, venda e compra, na procura de lucros sem sentido nem razão, transformando a economia, de algo concreto em algo abstrato, num jogo frenético em que pessoas, empresas, países se sentem peças de máquinas que outros manobram, sem Deus nem lei. E assim o mundo vai deslizando do real para o virtual na proporção em que as ideias de valor seguro, de ética nos negócios e de lucro justo perderam o sentido em certos ambientes da finança e da política. A maioria chegou a este estado de coisas sem perceber como.
Reparem como a informática – progresso extraordinário da ciência e da técnica – está a virtualizar o mundo vertiginosamente. Nas escolas, nas empresas, nas instituições, por todo o lado e para tudo gastam as pessoas o melhor do seu tempo e da sua capacidade para entrar em regras informáticas para as quais não estão preparadas. E que parece terem sido feitas para as confundir, desvalorizar e criando-lhes uma incessante consciência de culpa, porque depois de uma barreira ultrapassada há sempre outras, e sempre novos programas e novas funções e mais dificuldades. E isto com a convicção, a obrigatoriedade, a universalidade e a necessidade de um proselitismo perto do fanatismo; que seria ridículo se não fosse dramático pelo que faz perder de tempo para o que é importante em muitas profissões. Os processos, os concursos, os relatórios, as pautas, as informações, as comunicações obrigam-nos agora a essas teias informáticas, do mesmo modo que os contactos, as amizades, os conhecimentos, os diálogos, usam cada vez mais programas, chaves e plataformas.
E assim vão sendo mais labirínticos uns, e mais fluidos, virtuais, anónimos e perigosos, os outros. Dependentes cada vez mais de informáticos integralmente formatados do pescoço para cima, vamos dispensando o pensamento na formação e na vida, cheios de entusiasmo pelo “moderno” – seja isso o que for – e sem nos apercebemos da virtualização em que nos vão congelando. Não estaremos a deslizar sem se saber para onde?