Figueiredo Dias: “Quando era miúdo, as coisas faziam-se por cunhas”

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P – Jubilou-se em 2007 da atividade docente na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (FDUC). O que tem feito desde então?

R – Tenho feito o mesmo que fazia. Só não dou aulas na faculdade de Direito pública. Vou trabalhando, escrevendo alguma coisa, tentando fazer novos livros ou novas edições. Por outro lado, também dou pareceres como sempre dei.

P – Ainda dá aulas?

R – Sim, no Instituto Superior Bissaya Barreto.

P – Quando se jubilou, demonstrou grande carinho pelos seus discípulos…

R – Com certeza. Não sei se na altura me referia aos meus discípulos mais diretos. Mas posso dizer-lhe que essas relações continuam incólumes.

P – Continua a ter um gabinete na Faculdade de Direito?

R – Continuo. Nisso, a faculdade é impecável. É uma tradição que se compreende que noutras faculdades possa tornar-se cada vez mais difícil. O tratamento que a FDUC oferece aos professores jubilados é excelente. Excelente, dentro da pobreza que existe para todos. Conservo o meu gabinete, vou lá as vezes que entendo e disponho dele como qualquer outro professor.

P – Tem saudades da vida académica?

R – Tenho um grande apreço pela minha faculdade e pela vida que lá tive. Agora, francamente, não tenho nenhuma lacuna que sinta particularmente. Repare: as relações com os meus velhos colegas mantêm-se. Com os meus discípulos também. A única coisa que faz falta, é o meu relacionamento direto com os alunos da faculdade.

P – Já que fala em alunos, como vê toda esta polémica em torno do exame de acesso à Ordem dos Advogados?

R – Confesso que não tenho uma ideia clara sobre se deva existir ou não um exame de acesso. Talvez isso não seja escandaloso. O que eu sei é uma coisa: tem de haver um exame de saída. O acesso pleno à profissão tem de estar sujeito a uma avaliação. A menos que se faça confiança absoluta nesse ensino profissional que se dá nessas escolas. Mas tem que haver uma avaliação. Ainda não houve nenhuma inflexão notável no número de candidatos juristas. Porventura, eles excedem o que é normal noutros países de idêntico ou maior grau de desenvolvimento. E o mesmo se deverá passar com os juízes e procuradores: se formos ver estatísticas, é capaz de ser o mesmo excesso, embora haja queixas de que são poucos ou insuficientes. Agora, o número de advogados é excessivo.

P – Foi rejeitada a candidatura de Portugal a um lugar no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, da qual constava o nome de Anabela Rodrigues, a única mulher catedrática da FDUC. Alegou–se falta de qualidade na lista apresentada…

R – Não conheço os meandros da história.Mas, de 86 a 89, fui do conselho científico do Conselho da Europa. Tinha um relacionamento relativamente próximo com essas instituições. Agora, seja qual for a história, que se possa dizer que a lista apresentava nomes que não têm currículo, só por uma triste brincadeira…

P – Mas terá sido essa a justificação dada…

R – Não quero ser desagradável para ninguém, nem nomear pessoas, mas eu conheço outros que lá estão… que se calhar se avocaram em examinadores da competência de uma Anabela Rodrigues. É nesse sentido em que eu digo que é uma triste brincadeira. Não sei como é que se passam as relações entre esse corpo examinador e os órgãos europeus. Não sei. O que sei é que foi uma história lamentável.

P – É natural de Viseu, filho único, e foi para Coimbra estudar. Tinha 16 anos…

R –- Sim, fui para o 1.º ano de Direito. E nunca mais de saí de Coimbra.

P – Quis um sistema processual democrático quando, antes do 25 de Abril, isso não era possível. Como sentiu essa transição?

R – Sempre fui democrata. Era ainda muito novo quando entrei para assistente do Prof. Eduardo Correia. Fui dar aulas teóricas de Processo Penal: aquilo era quase um escândalo: um miúdo de 23 anos! Eu ensinava o Processo Penal tal como entendia que ele devia ser (mas que não era). E, depois, já doutorado, resolvi fazer um livro: foi o Processo Penal Português, que foi considerado uma espécie de manifesto daquilo que poderia ser o processo penal num regime democrático. Publiquei este livro 15 dias antes do 25 Abril.

P – Houve alguma intenção em fazê-lo nesse período?

R– Fi-lo com uma grande dose de inocência. Era o processo penal que eu entendia que deveria ser. Eram as minhas ideias e as que correspondiam a ideias de países que, na altura, já tinham democracia estabelecida.

P – Esteve na formação do PSD…

R – Estive. Ainda agora li o livro que foi publicado sobre o PSD e isso fez-me lembrar tantas coisas. Tantas coisas…

P – Pode falar-me de alguma delas?

R – Poucos dias depois do 25 de Abril apareceu aqui [em Coimbra] o Sá Carneiro. Era pessoa que eu não conhecia pessoalmente. Falou na fundação de um partido e, numa reunião que decorreu num restaurante que já não existe (perto de Vale de Canas), quisémos definir as linhas programáticas. O Barbosa de Melo lembrou-se de umas linhas programáticas do partido social-democrata alemão. E eu disse: “tenho isso lá em casa”. Fui a casa, lá consegui encontrar o livro, levei-o, e estive, com alguma dificuldade a traduzi-lo do alemão. Para mim, isso é que foi a fundação do PPD/PSD.

P – Conheceu Mário Sá Carneiro?

R – Conheci muito bem e creio que nos tornámos amigos até ao fim. A certa altura afastei-me do PSD, nomeadamente por divergências que havia de orientação do PSD relativamente ao general Eanes. Discretamente pedi a minha demissão. Depois disso, ainda me encontrei com Sá Carneiro numa viagem de avião, não muito antes da morte dele. Foi em Zurique. Viemos a conversar, estivemos à espera das malas e despedimo-nos combinando que ainda havíamos de nos entender, havíamos de ter uma conversa, um almoço… Nunca mais o vi.

P – Como viu a saída de Car-los Encarnação da Câmara de Coimbra?

R – Foi uma surpresa para mim. Dizem-me agora que ele já teria demonstrado em círculos restritos a sua vontade de ir embora. Há muitos anos, ele foi meu aluno…

P – Foi seu aluno?

R – Então não foi? Mas há alguém neste país que não tenha sido? (ri-se)

P – Falou-se, a dada a altura, na criação de um Instituto de Criminologia…

R – Porque que é que a Sr.ª há-de falar nas minhas derrotas? (sorri, de novo)

P – Mas foi uma derrota sua?

R – Foi. Poderia dizer que morri na praia. O instituto chegou a ser criado. Até tinha casa em Coimbra. As tentativas foram variadíssimas e aquilo ora se criava de uma forma, ora de outra. A ideia era ter um instituto de criminologia a sério. Ficou-se preso por dúvidas, o que mostra que, no fundo, não havia interesse.

P – A taxa de criminalidade está a subir?

R – A taxa real de crimes nunca pode conhecer-se porque há crimes que ficam escondidos: são as chamadas cifras negras. Não se pode dizer que tenha havido uma explosão da criminalidade neste país. Há campos em que antes não havia criminalidade e agora há: criminalidade informática, certos tipos de criminalidade económica… Agora que me digam que a corrupção é agora maior do que era há 40 ou 50 anos… não sei…Tráfico de influências? Quando eu era miúdo, as coisas faziam-se por cunhas, ou não era? Mas isto nem sequer tinha um juízo negativo de valor social. Toda a gente aceitava isso. Hoje será, possivelmente, um crime de tráfico de influência.

P – Preocupa-o a mediatização da justiça?

R – Esse é um dos problemas mais graves. Não nos damos bem com ele. Mas a verdade é esta: há muitas coisas que não são novidade no conspecto mundial, mas que nos chegaram demasiado tarde. Porquê? Porque não tínhamos uma imprensa livre. Sem uma imprensa livre, a mediatização é aquela que o poder quiser. Hoje ninguém tem, felizmente, mão sobre os órgãos de comunicação. E eles próprios também, viram–se, de um momento para o outro, com um aparente poder na mão, embora às vezes não façam o melhor uso dele. Receio que aqui, a influência da mediatização sobre a justiça possa ser comparativamente maior do que noutros países.

P – Devem ou não os jornalistas estar sujeitos ao segredo de justiça?

R – Sim e não. Como qualquer cidadão, ele tem que estar sujeito ao segredo de justiça. Ele não pode trabalhar no sentido de quebrar um segredo de justiça. Mas se a notícia vai ter com ele, sem qualquer meio ilícito, não vejo porque é que não pode publicar. Em todo o caso, para me sujeitar à crítica, devo dizer-lhe que em geral, o segredo de justiça deve persistir.

P – E em relação às escutas?

R – Sinto-me um bocadinho responsável por tudo isso. Porque fui o primeiro a falar no espaço português sobre as proibições de prova, de que são exemplo as escutas. Receio, efetivamente, que a percentagem de escutas em Portugal destinadas ao processo penal, seja significativamente superior à média europeia… e até à dos EUA. A escuta telefónica, sendo um meio legítimo, não pode tornar-se na forma de investigar todos os crimes. Não se pode pôr toda a gente sob escuta à espera que algum dia vá fazer uma maroteira. Mas compreendo que as escutas ilícitas, ainda que sejam levadas ao processo, não possam ser valoradas. Compreendo que essa matéria seja de muito difícil compreensão para a pessoa comum. Imagine que um indivíduo consegue sair ilibado porque uma certa escuta não foi validada, que chegue cá fora com um ar de quem não fez nada e de que é inocente como um cordeiro. Para a justiça é, com certeza. Agora, para a consideração social…

P – Como viu todo o processo da Casa Pia?

R – A Casa Pia é um fe-nómeno social… É mais um que mostra que os critérios de atuação da justiça têm que ser mudados. E que não se comece a procurar culpados. Um processo daqueles, não é, com todo o respeito, adequado ao Estado de Direito.

P – O que o leva a dizer isso?

R – Ora, o tempo, o esforço e uma coisa que as pessoas não gostam de dizer, o dinheiro que aquilo custou a cada português. Não pode ser! A forma de actuação de justiça tem de ser uma forma de actuação cooperativa Chamem-me ingénuo! O Ministério Público (MP) não é inimigo nem do juiz nem do defensor e vice-versa. São três órgãos autónomos de administração judiciária. É assim que vem na Constituição. Todos eles têm que conjugar-se, cada um exercendo a sua função, para alcançar um resultado, que é a decisão de um qualquer caso, justa, adequada e rápida.

P – Isso prejudica a justiça?

R – Isto significa uma atitude de chicana, que não é só do advogado. Qualquer um pode ser chicaneiro ao tornar o processo ainda mais complexo, ainda mais demorado, sabendo que isso não serve para nada. Isso não leva a parte nenhuma. Os hábitos têm que mudar.

P – É essa a causa da morosidade da justiça?

R – Quase me apetecia dizer que é a causa.

P – A autonomia do MP está ameaçada?

R – Francamente acho que não. A autonomia está suficientemente fundada. Eu fui um dos que estiveram na origem da atribuição de um estatuto de autonomia ao MP. Acho que continua a ser uma estrutura disciplinada dentro da tal organização hierárquica. Esta deve existir, deve ser acentuada e os magistrados do MP não têm que se revoltar quanto ao facto de receberem ordens dos seus superiores hierárquicos.

P – Foi testemunha abonatória no julgamento de José Eduardo Simões e disse que o mundo do futebol se rege por códigos próprios…

R – Sim. Existe o código e os outros códigos que todos nós temos. Mas em certas atividades, tais códigos são mais marcados. Não conheço o processo. Agora o que eu disse – e disse-o em público: não me parece adequado à personalidade de José Eduardo Simões que ele tenha concebidamente, dolosamente, intencionalmente, cometido crimes de corrupção. Não me parece. Agora, o que pode é que certos comportamentos serem explicados por esses “second codes” que dominam o futebol neste país. Se fossemos, com uma escala milimétrica, analisar as atividades, os atos concertos de todo e qualquer dirigente desportivo… Há aquilo a que nós chamamos a adequação social. Há comportamentos que até A sr.ª jornalista, se calhar, há poucos dias cometeu um crime de corrupção, nomeadamente se, por exemplo, deu 20 euros ao carteiro. Mas é socialmente adequado.

P – Quer com isso dizer que José Eduardo Simões foi ingénuo?

R – Não tem que ser ingénuo: pode deixar comandar-se por procedimentos habituais. Não posso, nem quero, falar de um processo que não conheço. Agora, numa coisa insisto: o José Eduardo Simões, conhecendo-o, acho-o uma pessoa honesta. A imagem e o juízo que tenho dele, não se enquadra na de um criminoso que vá corromper.

P – Vem aí o ano de 2011. O que deseja?

R – Paz na família, no país e em mim.

P – A vida que tem hoje foi a vida que sonhou?

R – Não. Sonhar não sonhei. Tem sido uma surpresa. Uma agradável surpresa.

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