Um amigo trouxe-me há dias cópia de um artigo, “A língua e a cultura”, com mais de quarenta anos, e que publiquei na revista académica “Capa e Batina”, nº 24, 1969. Já me tinha esquecido dele, mas, ao relê-lo, apanhei-me a fazer comparações com a situação actual. Criticava os que ao tempo pensavam defender a língua pelo policiamento dos estrangeirismos e a promoção militante do purismo linguístico, sem notarem, segundo me parecia, que o problema era mais vasto. E, como tal, exigia uma solução que passava pela educação literária da população a partir da escolaridade básica, só nesse época em começo de expansão e extensão. Seria a melhor maneira de qualificar e defender a língua e não com proibições. A escola devia formar mais literária e esteticamente do que gramatical e linguisticamente, como então fazia. Alargar o mais possível o gosto pela leitura, com textos de qualidade, sugestivos, variados, bem lidos, para assim criar exigência literária. Assim se defenderia a língua e a cultura, e não seria preciso andar com batalhas que, sem estas condições, eram perdidas.
Passados quarenta anos a receita parece ainda boa, mas é curioso perceber como evoluíram as coisas. A população que lia livros era muito mais reduzida, constituindo, em termos gerais, uma elite relativamente aos que não liam, e mesmo aos que hoje têm escolaridade bastante para algum consumo de leitura, e a isso o devem. O mundo das publicações era também muito mais restrito: uma dúzia de editoras, uns tantos autores mais ou menos consagrados, uma crítica que conseguia acompanhar a produção e estabelecia critérios, catalogava as famílias literárias; e tudo com edições sempre reduzidas.
Hoje publicam-se muito mais títulos, há muito mais editoras e autores, cresceu o número dos escritores profissionais, coisa raríssima então, e embora não sendo a regra, algumas das atuais tiragens seriam impensáveis há quarenta anos. Mas há factos novos que ofuscam os critérios e criam ruído e confusão. Quase podemos dizer que a crítica desapareceu, perdeu importância face a novas e poderosíssimas forças que escolhem, decidem e promovem, com critérios nem sempre de qualidade literária. Há um fenómeno inédito, que é a promoção televisiva; não dos bons livros através da televisão, mas dos que aparecem nas televisões e, por isso, se transformam em autores de sucesso quando publicam qualquer coisa. Não quer dizer que não possa haver, entre eles, bons autores, mas que é o aparecer que determina o sucesso, e isto não pode ser critério.
Digamos, portanto, que as coisas não mudaram muito, tendo mudado bastante. Subiram de degrau, deslocaram-se lateralmente e para um patamar acima. Evoluiu-se a vários níveis, mas, em alguns aspetos, é ilusória a evolução. É claro que as pessoas têm direito a ter os seus gostos, que as preferências literárias (como as outras) variam muito, e evoluem, tal como os leitores. Ora, a partir desta plataforma de um mínimo de exigência, na diversidade, é mais fácil continuar a evoluir do que se não tiver havido esse primeiro patamar. E o número das pessoas que o conseguem é agora muito maior; alargou-se muito o campo dos que têm hoje capacidade para isso. O que cria possibilidades de evolução do consumidor, com exigência, mas que o comercial nem sempre acompanha, porque não lhe interessa.
Embora hoje, na escola, se faça bastante mais pela educação estética – havia muito pouca sensibilidade para isso antigamente – é pela criação desse gosto no maior número de pessoas que se avançará na defesa e promoção da língua e da cultura portuguesas; a inversa também é verdadeira. Como há quarenta anos, de resto.