Entrevista a Amadeu Carvalho Homem

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Foto de Luís Carregã

Amadeu Carvalho Homem, republicano e democrata com uma intervenção cívica marcada, presidiu em Coimbra à comissão que organizou as comemorações do centenário da República. Ao DIÁRIO AS BEIRAS, o professor da Universidade de Coimbra que se tem dedicado especialmente ao aprofundamento da história republicana, fez uma crítica contundente aos “maus republicanos”.

P – O centenário da implantação da República coincide com uma profunda crise nacional. Por isso, também, é fundamental celebrar a República?

R – Eu tenho a impressão que é mais fundamental que nunca. Porque eu estou persuadido que o grande problema com que Portugal está confrontado, a grande crise, nem é propriamente a crise económica. Se for resolvido em Portugal um problema que não é apenas nosso mas de toda a Europa, que é uma profundíssima crise de valores, o problema estará superado pelo menos em 50 por cento. Porque aquilo que neste momento nos paralisa é uma profunda descrença no futuro, é não vermos uma boa saída para os problemas do ensino, da formação do cidadão, da formação integral da pessoa. Esta é uma crise muito mais ética do que propriamente económica ou política. E essa é que verdadeiramente me preocupa. Porque sei que se essa se conseguir vencer, as outras também serão vencidas progressivamente.

P – Essa é a principal alavanca para vencer esta crise?

R – Para mim, é a alavanca fundamental. E, por isso, é que é tão importante tudo o que se refere à questão escolar. A escola desempenha hoje na estratégia da recuperação de Portugal um lugar insubstituível.

P – Está a falar da educação?

R – De um modo geral a educação. A educação nos seus diversos graus de ensino. Não direi que se trata de corrigir o ensino no escalão intermédio, no escalão pré-primário, no escalão superior. É necessário, isso sim, uma atividade que permita reciclar, reformular, aprofundar e, sobretudo, democratizar, dando competências a todos esses graus de ensino. O ensino deve tornar-se, na minha perspectiva, muito menos tecnocrático, para se tornar muito mais interventivo, muito mais humanista e muito mais formador da personalidade.

P – A ética e os valores de que falou, que entretanto se foram esvaziando, conseguem recuperar-se levando essa competência ao ensino?

R – O ensino, só por si, não é a panaceia para todos os males. Será, isso sim, um elemento estratégico fundamental. Porque a crise atual é uma crise de sociedade, nascida das duas guerras mundiais e muito do facto de as famílias terem de recompor-se em moldes novos, com valores cada vez mais concorrenciais e economicistas. As famílias tradicionais desmembraram-se, deixou de haver a aproximação e intercâmbio geracional que estruturavam sobretudo em termos de valores. Hoje, as crianças são deixadas em frente a um ecrã de televisão, na rua ou confiados a pessoal pouco qualificado. E daí resulta este ermo de valores com que hoje nos confrontamos. É necessário repensar o papel da escola, mas também o papel da família. Nós temos de encontrar, e rapidamente, um novo conceito de família, mas também novas formas de apoio e de incentivo à família.

P – À míngua de valores, nascida muito também da desagregação familiar, soma-se a cada vez mais baixa taxa de natalidade, pondo em causa a sustentabilidade do Estado Social. Como é que se reformula esta equação?

R – Eu gostava de ter no meu bolso a solução. Não há dúvida que é isso que põe em causa o Estado Social [eu não acredito que sejam apenas os políticos a quererem desembaraçar-se dele]. A grande questão é que há cada vez menos gente jovem e cada vez mais gente idosa, o que resulta na clara insuficiência dos meios económicos. A verdade é que a população europeia e portuguesa está a envelhecer, com baixíssimas taxas de natalidade e isto é objetivamente um problema. Não sei bem como é que se pode inverter este ciclo, mas sei que há um caminho que não deveria ser trilhado: aquele que certas soluções políticas de direita e extrema direita preconizam e que, no meu entender, são verdadeiramente suicidárias. Que é uma Europa convertida em bastião, recusando a entrada e a miscigenação de emigrantes, convertendo-se cada vez mais numa Europa sem garra, sem perspectivas e que, assim, estará condenada à paralisação e à inércia.

P – A Europa não pode fechar-se?

R – A Europa não pode fechar-se e, sobretudo, não pode fazer um discurso de xenofobia e de racismo. E este é um risco que começa a desenhar-se e com contornos muito preocupantes. Sobretudo porque, como sabemos, já deu muito maus resultados, sobretudo na segunda guerra mundial. É, de alguma maneira, algo explosivo, que pode conduzir a Europa para uma situação sem saída.

P – E os valores republicanos em todo este processo?

R – Os valores republicanos, do meu ponto de vista, estão na ordem do dia. Porque são valores que, por um lado, são evolutivos, têm de se adequar aos tempos que se vivem. Depois, são, por si mesmos, suficientemente generosos para podermos acreditar que, com base neles, é possível construir uma sociedade melhor. Porque, repare, não vamos conceber uma democracia sem sufrágio universal, valor republicano por excelência. Não vamos conceber uma sociedade de privilégios, e, portanto, o princípio republicano da igualdade dos cidadãos perante a lei é um princípio fundamental. Não vamos admitir uma justiça para ricos e outra para pobres, ou uma escola para pobres e outra para ricos. Efetivamente, esta abertura à equanimidade dos diversos sistemas – de educação, de formação, judicial, de neutralidade do Estado em matéria religiosa e todos os demais sistemas de apoio social – são valores intrinsecamente republicanos.

P – A propósito do centenário da República, estas questões, que nos são fundamentais enquanto sociedade, tiveram o debate necessário?

R – Fez-se alguma coisa, fez-se muito menos do que seria desejável. Não houve da parte dos titulares do poder um empenho verdadeiro e real para que estas questões fossem debatidas no interior da sociedade portuguesa. O que houve foi uma manifestação espontânea da sociedade civil, pedindo a diversos agentes para partilharem o seu conhecimento com os demais. Agora, aquilo a que eu não assisti, com grande pena minha, foi a um empenhamento da parte dos poderes públicos, dos mais altos poderes públicos, para que estas coisas fossem não apenas debatidas, mas debatidas como devem ser, com o sentido do amanhã.

P – E esse debate não aconteceu?

R – Não. Não aconteceu. Se estivermos atentos à programação relativa ao centenário da República, o que se verifica é uma resposta verdadeiramente sensacional e nacional, do Minho ao Algarve, passando pelos Açores e Madeira, da sociedade civil. Foram agremiações várias, escolas, universidades, grupos culturais, associações locais que vieram ter com muitos de nós para nos dizerem venham falar-nos destas coisas. E também assistimos a poderes públicos que encararam o centenário num registo puramente comemoracionista e não foram além disso.

P – Tratou-se, neste particular, de mais uma oportunidade perdida pelos altos poderes da nação?

R – Eu estou convencido que este Governo e, atrevo-me a dizer, esta Presidência da República, perderam uma oportunidade. E continuam a perder.

P – Mas, neste momento, nem o Governo, nem a Presidência da República podem continuar a perder oportunidades?

R – Pois não. A menos que, realmente, já aceitem pacificamente que a situação – socioeconómica, sociopolítica e sóciocultural – se pode encaminhar para desenvolvimentos muito preocupantes.

P – Que desenvolvimentos preocupantes são esses?

R – Sei que continuam a persistir tiques preocupantes e muito nocivos no interior do partidarismo português. A pouco e pouco está a tentar naturalizar-se uma coisa que não é naturalizável. Nós hoje caminhamos cada vez mais para a definição de um Estado camarilha, um Estado que distribui as suas benesses aos compadres, aos amigos, aos que estão próximos da sua ideologia, aos que se abeiram, aos que propõem ser aparachiques. Mas vemos, simultaneamente, que o Estado deixa, cada vez mais, de responder em termos de necessidades coletivas. A pouco e pouco, assistimos à implantação de um Estado camarilha em detrimento de um Estado função.

P – Pode fazer-se aqui um paralelo preocupante ao tempo da implantação da República. Foi isto que a República quis combater?

R – Foi isto que a República quis combater e que, em muitas situações, não conseguiu combater. Não estou aqui a fazer uma espécie de lavagem lustral às nódoas da primeira República, que também as teve. E às nódoas desta segunda República, que também as tem. O que eu estou a dizer é que valeria a pena que, sobretudo os agentes políticos, os partidos políticos, tomassem consciência de que a situação é suficientemente grave para eles não poderem mais continuar a funcionar como agências de empregos e passassem a funcionar mais como unidades de formação cívica. E é isso que, efetivamente, não se faz. Nós verificamos que a maior parte dos partidos políticos portugueses, talvez com uma exceção que nem vale a pena referir, funcionam da seguinte forma: ativam-se na altura dos atos eleitorais e fora disso têm as portas fechadas. Portanto, todo o trabalho de formação e construção de cidadania, que podia passar por conferências, por conversas, por tertúlias, por captação da gente nova…

P – Lá está, pelo debate?

R – Pelo debate e pelo aprofundamento do debate, que não se faz. E não se faz porquê? Porque o que interessa fundamentalmente é ganhar o próximo ato eleitoral. E nem sequer se vê que, dessa maneira, está-se a perder progressivamente aquilo que há de melhor nas camadas jovens. Os jovens estão cada vez mais divorciados da política porque chegam facilmente à conclusão que os partidos não lhes dão respostas às suas preocupações, sequer às suas preocupações de se definirem como cidadãos, dando-lhes apenas respostas se eles quiserem ser os homens que levam aquela bandeira partidária.

P – E no entanto viu-se, agora com a celebração da República, que há vontade de participar. O que ficou claro até com a gloriosa tarde de 5 de outubro [de 2010] em Coimbra?

R – Há vontade de participar, sim. E isso viu-se em Coimbra. Eu não utilizaria a palavra gloriosa porque uma parte da glória passaria por cada um dos responsáveis pela organização e ninguém fez isto para sua glória. Agora, uma coisa é certa, Coimbra, sobretudo num determinado extrato social, nomeadamente as famílias que vivem com angústias económicas, estava na rua e quis celebrar. E este foi um momento espantoso e muito gratificante.

P – O país quando é chamado responde?

R – O país quando é chamado a responder e verifica que há muita doação, muita generosidade, muito espírito de missão e de serviço, responde. O que o não está é disposto a responder às perspetivas puramente egoísticas dos que pensam com o estômago. Para isso não está conquistado. Para isso já deu demasiadas vezes.

P – Percebo das suas palavras, o gratificante que foi presidir a uma comissão que assim conseguiu mobilizar a cidade, com a festa, mas também com o debate?

R – Sim. Tive honra em dar o meu contributo, ao lado de outros cidadãos. Esse trabalho foi desenvolvido numa perspetiva de acentuação dos valores cívicos.

P – E há ainda a Comissão Cívica de Coimbra para o Centenário da República, que também integra?

R – Que desempenhou um papel importante e interessante, porque foi a mais preocupada com o problema da transmissão de valores. E por isso publicou o “Manifesto Cívico pela Moralização da República”.

P – Manifesto pleno de oportunidade?

R – Este manifesto não é nosso [Amadeu Carvalho Homem, Anabela Monteiro, Augusto Monteiro Valente, Carlos Esperança, Fernando Fava, José Dias, Rosa Campos], os que agora o subscrevem, ele surgiu redigido por uma grande individualidade intelectual e académica, já falecida, o professor José Augusto Seabra, que no Porto decidiu publicá-lo, em 31 de janeiro de 2003, no âmbito do Centro de Estudos Republicanos Sampaio Bruno. O que é extraordinário e, simultaneamente, muito revelador, é que lido este manifesto, que foi feito em 2003, verificamos que, transcorridos sete anos, tudo aquilo que lá se diz sobre o diagnóstico e o prognóstico de futuro, está tudo certo, é tudo aplicável. E foi justamente por isso, por constituir um momento de grande autoconsciência do estado da República, que a Comissão Cívica entendeu que o devia reeditar.

P – Esta pode ser uma pequena semente…

R – A ideia é essa! Efetivamente a Comissão Cívica funcionou dentro desse registo. O problema que se coloca agora à comissão é este: ou entende que a sua missão está esgotada e se dissolve ou não. E esse é um problema que tem de ser debatido no âmbito da própria Comissão Cívica. Agora, há uma garantia que eu, desde já, posso dar. Pelo menos, enfim, passando pelo meu estatuto de decisão, a Comissão Cívica de Coimbra para o Centenário da República não será de modo nenhum o embrião de nenhuma nova partidocracia.

P – A sua missão irá manter-se dentro da intervenção cívica?

R – Exato. Poderá converter-se num grupo de reflexão, que tenha alguma palavra a dizer, nomeadamente sobre os problemas da cidade e do desenvolvimento da zona Centro. Agora, que ninguém queira ver na Comissão Cívica um fermento qualquer para a instalação de um novo grupo de pressão, porque isso não irá acontecer.

P – E a moralização [da República] que se preconiza e que as pessoas, na rua, pedem igualmente?

R – E compreende-se muito bem porquê. É que esta segunda República, na sua primeira fase, ainda ressalvou alguma dignidade de processos, ainda nos convenceu de alguma nobreza de propósitos. Houve uma primeira geração de políticos que foi notável – o Dr. Mário Soares, o Dr. Álvaro Cunhal, o Dr. Francisco Sá Carneiro, o Dr. Freitas do Amaral –, todos grandes vultos da intervenção cívica e todos eles muito dispostos a fazer da política um serviço coletivo e a debater politicamente e com seriedade os grandes problemas que se colocavam. Eu não quero ser demasiadamente severo para com a geração que se seguiu, mas, no mínimo, terei de dizer que ela não é semelhante, em envergadura e em valor intrínseco, àquela que tivemos logo a seguir ao 25 de Abril.

P – Sobretudo não conseguiu cumprir as promessas da segunda República?

R – Pois não. E cada vez as está a cumprir menos. E é bom que estas coisas sejam ditas com todo o desassombro dos democratas. É bom que se diga que há muita gente que se considera defraudada, enganada e que, a pouco e pouco, está em processo de divórcio em relação a este regime. E isso é que é trágico, porque não é o regime nos seus valores fundamentais que está em causa. O que acontece é que o regime está a ser servido por maus republicanos.

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