Os “amigos” de Lisboa

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A propósito dos artigos sobre o “Condomínio Lisboeta”, e de algumas reações, devo dizer que Lisboa é uma bela e sedutora cidade. Que gosto imenso de Lisboa; quem não gosta? É difícil encontrar cidade que concilie, como ela, a graça do conjunto, o imprevisto das ruas, o calor das cores e das pessoas e a medida humana da sua arquitectura por irregulares colinas, com a abertura e a luminosidade que o rio lhe dá e o mar ali tão perto projeta indefinidamente. Ver chegar Lisboa, para quem sobe pela Barra do Tejo, sob a humidade da brisa a humanidade branca e irregular das suas encostas, é uma doce e alvoroçada experiência que não se esquece. Vê-la afastar-se a bordo do Niassa, por exemplo, («o cais é uma angústia de pedra», como dizia Fernando Pessoa) a deixar espaços cada vez mais largos e fundos entre o casco e o paredão, ainda se esquece menos.

Mil braços em terra acenando e a afastarem-se, a cada instante mais longe e indefinindo os ”nossos”, o desconhecido futuro apertando-nos o coração, pois se os veria outra vez, quem nos poderia dizer? Pois se de novo os viria a apertar, quem nos podia garantir? Tudo isto fica na alma de um homem, que julgam? Lisboa está-nos no sangue de uma maneira amorosa e tão entranhada que, mesmo querendo, não nos libertaríamos dela. E queremos, nós, isso? Não, não queremos. Como ficar indiferente a certas canções e fados da Amália, plantados na memória de infância, e que são a Lisboa do nosso imaginário mais sentimental e afectivo?

E depois há a Lisboa da literatura. Tanta coisa. A do Cesário Verde, do “Sentimento de um Ocidental”, a do Fernando Pessoa, da “Ode Marítima”, da “Tabacaria” e tantos outros, a do Rodrigues Miguéis, d’ “A Escola do Paraíso”, a do Saramago d’ ”O ano da morte de Ricardo Reis”, a das crónicas do Lobo Antunes, etc., etc. E também, por que não? A “Lisboa em camisa”, do Gervásio Lobato, mais “A Vizinha do lado” e “A maluquinha de Arroios”, do André Brun, e o Cottinelli Telmo, o Vasco Santana, o António Silva, a Beatriz Costa, e a Senhora Rosa, a quem chegou a rica filha, e toda essa malta que a gente não se cansa de amar.

E, claro, a Lisboa de Eça de Queiroz. A de Carlos da Maia, do Ega, de Fradique Mendes, do distraído Cruges, e de toda essa gente de qualidade. Mas também dos Gouvarinhos e dos Dâmasos de Salcede e dos Palmas Cavalão, enfim, dos cavalões todos e de todas as cavalidades. E são estes sobretudo que repugnam. Que já repugnavam antes, que repugnam ainda e vão continuar a repugnar. Porque eles cavalgam Lisboa, eles enchem Lisboa, eles enchem-nos de Lisboa, eles parasitam Lisboa para nos sugarem, nos descapitalizarem, nos desdenharem, nos provincianizarem. E sem direito a isso, porque lhes falta moral, inteligência e cultura. Eles criaram um condomínio fechado porque lhes interessa, os beneficia, lhes dá dinheiro e estatuto.

A verdade é que por falta de políticas inteligentes e nacionais o desequilíbrio entre Lisboa e o resto está à vista. Nem se diz que Lisboa não seja uma cidade aberta, cosmopolita, porque o é, e que não tenha enormes condições de estratégia política, porque tem. E que isso não deva ser aproveitado, porque deve. Mas, o exército dos políticos, o enxame dos assessores e as levas de jornalistas, locutores, apresentadores, comentadores e opinadores alimentam, para seu governo, uma subtil teia de influências, de promoções selectivas, de nomeações cirúrgicas, de valorizações mútuas, de atenções especiais, de referências contínuas, de recíprocas entrevistas, dando sucessivas voltas sobre si mesmo, concentrando-se, atrofiando o país, encolhendo o país, ignorando o país. Se isto não é a mentalidade dos que se metem em condomínios fechados e se envolvem em gradeamentos electrificados o que é então?

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