“Humanidade”

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As palavras são mágicas. Servem para tudo, para alegrar, para entusiasmar, para matar, para curar, para aliviar, para recordar, para esquecer, para dar sentido à vida, para amar, para odiar, ou seja para tudo o que um ser humano se possa lembrar. É um encanto poder domesticá-las e dar-lhes um sentido por mais simples que seja. Acontece que o sentido com que o autor pretende carregá-las resvala, frequentemente, pelos flancos e perde-se no caminho. Sentido mal albardado por inépcia ou incapacidade do autor ou por miopia de quem as lê ou, então, por culpa de ambos. Não importa, sempre foi assim e irá continuar.

Muitos autores escrevem, na maioria das vezes, para si próprios, permitindo a partilha da leitura a terceiros assim que acabam de escrever, ou mais tarde, às vezes tão tarde ao ponto de já fazerem parte do reino dos mortos.

Costumo analisar o comportamento humano nas suas

múltiplas facetas assim como o papel de Deus em muitos assuntos. Quanto a este último, faço-o não por uma questão religiosa ou de fé, as quais desde muito cedo me causaram muitas dúvidas e deceções, mesmo numa idade em que ainda não sabia escrever ou escrevia muito mal. Ainda caí na esparrela de escrever uma carta ao menino Jesus, por alturas de um Natal, mas, agora, passados tantos anos, recordo que o que eu queria era mesmo acreditar, se bem que achasse um pouco estranho que houvesse correio para aquelas bandas. Um pouco mais tarde começaram as minhas discussões e perguntas “estúpidas”, e tinha de ser logo com os padres.

Passei a infância, como muitos outros, imerso numa cultura religiosa intensa, cheia de “explicações” esquisitas e pouco plausíveis que foram minando a minha “racionalidade” infantil. E como tal não bastasse, ao longo dos anos, foi raro o dia em que não ouvi que muitos acontecimentos foram, são ou serão da responsabilidade divina.

“Explicações divinas” são uma constante, uma expressão da crença de milhares de milhões de pessoas por esse mundo fora, embora jogando em religiões diferentes, as principais na primeira liga, enquanto as outras se entretêm em campeonatos secundários. Tal facto obriga-me a comentar as intenções de Deus em coisas importantes e em coisas mais comezinhas. Não é uma questão de desprezo por quem tem crenças. Não é por isso, às tantas, até posso estar errado, o pior é que não consigo achar onde está o erro ou onde errei. Tanto faz que exista ou não. Digo que tanto faz, porque de uma forma ou outra, as coisas continuam na mesma, sem soluções.

Escrevo frequentemente homem com letra minúscula para representar a humanidade. Faço-o não por uma questão de erro ou de esquecimento. Não, escrevo propositadamente.

Dizem e poderão dizer que está errado. Não é assim que se escreve, homem, quando diz respeito ao coletivo tem de ser escrita com H, maiúscula. Poder ser e aceito que gramaticalmente é assim que se deve escrever, tal como Deus. Escrevo homem ou humanidade em minúsculas porque me apetece. Está errado, disseram-me. Não sei se está ou não! E agora pergunto: – O que é que me acontece por escrever com minúscula? Nada! Ótimo. Mesmo que me apontem como sendo um erro, não corro grandes riscos de reprovar, porque já fiz o exame da quarta classe há muitos anos, no qual não se podia escrever muitas calinadas. Sendo assim, não reprovo. – Então porque é que escrevo Deus com letra maiúscula? Nem sempre, às vezes, quando estou chateado com ele ou com a sua ausência escrevo com minúscula, mas reservo esta última forma para os deuses de segunda ordem, porque a maioria são filhos de um deus menor.

Deste modo, faço a distinção entre um deus humanizado e o comandante supremo. Existe? Não existe? Não sei, nem me interessa, porque o resultado é o mesmo; uma humanidade cheia de pesadelos, de sofrimento, de injustiça, de angústia e de dor em que os responsáveis são os próprios homens. Para mim ainda não atingiram o estatuto e a dignidade que permitem escrever Homem em vez de homem. Aqui está a minha explicação: persisto num erro ortográfico deliberadamente. Não se trata de um qualquer defeito do corretor ortográfico, como já foi sugerido. Não, nada disso, é mesmo intenção minha e se o raio do corretor tivesse capacidade de chamar atenção para o facto, eu contrariava-o e escrevia homem.

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