Opinião: Das vozes das crianças

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Nos dias (distantes, já) da minha juventude, um grupo brasileiro chamado Secos & Molhados divulgou uma canção que soava meio a lamento meio a protesto. O timbre do vocalista do grupo, a indumentária, os rostos pintados dos músicos sublinhavam a bizarria das palavras que nos convocavam, aos ouvintes, a pensar nas crianças “mudas, telepáticas”, nas “meninas cegas, inexatas”.

Sabemos, das nossas vidas, que não é a mudez nem a cegueira que evitam que as crianças, as meninas, encontrem caminhos para perceber o mundo. Menos em Hiroshima, a cidade que se iluminou e escureceu quase no mesmo segundo, se detonou e calou num só instante, levando no desatino atómico milhares de civis entre os quais se contavam as tais crianças, as tais meninas, os seus pais, avós, vizinhos, amigos e colegas de escola. 140 mil civis mortos num gigantesco ato de guerra – o quase-espetáculo com que os EUA anunciaram a sua determinação em mandar no mundo a partir da imagem de um cogumelo de fogo. Com o disparo de 6 de Agosto de 1945, Enola Gay, o bombardeiro que lançou a primeira bomba nuclear da História, não visava o fim de uma guerra já em epílogo desde a rendição da Alemanha nazi em 9 de Maio daquele ano. Visava iniciar uma de muitas mais, ciente de que as guerras são sempre parte de um lucrativo negócio para uns, de miséria total para outros. Tratava-se, pois, de selar o festim com um evento algures entre a barbárie da guerra real e o espantoso dos cinematográficos efeitos especiais.

Meio século depois das bombas de Hiroshima e Nagasaki a guerra nuclear permanece o maior dos temores e a maior das ameaças à paz mundial e à vida na Terra. É que a guerra continua a ter quem a aceite e até quem a justifique, num enredo de bons e maus que se desenrola, tão patético quanto eficaz, desde o final da Segunda Grande Guerra. O último dos pretextos dos maiores agressores da História moderna e dos seus aliados é a guerra pela “liberdade” e pelos “direitos humanos”, movida a partir dos diretórios da economia mundial. É como se a maior das ferramentas da liberdade e o mais sagrado dos direitos humanos não fosse o direito à vida e à escolha daquilo que se faça com ela, nem que seja morrer pela liberdade dos seus.

À frente da TV, o desembarque dos “refugiados” a quem se nega refúgio é apenas mais um espetáculo, uma pequena dorzinha no nosso dia-a-dia, depressa resolvida com um donativo qualquer que permitirá às crianças, num qualquer campo de concentração da Turquia, um consolo que não é , nem pretende ser, o regresso a casa, à escola, ao crescer e fazer-se adulto nas ruas que foram as dos seus pais, antes de serem “libertados” pelas bombas dos Estados que lhes quiseram o petróleo, mas lhes enxotam a existência.

Pensemos, pois, nas crianças, nas meninas. Naquelas que continuam a dar às costas da fortaleza europeia, umas vivas, outras mortas, umas e outras personagens de histórias de desesperança que não são elegíveis para matéria dos enredos, aqueles que continuam a despejar nos nossos serões de TV dezenas de heróis anglofalantes e vilões falantes dos demais idiomas. Há quem se conforme. E há quem se indigne, como Vinicius de Moraes no poema Rosa de Hiroshima, cantado no meio-lamento, meio-protesto, que ensinou muitos dos da minha geração a recusar a Guerra. Por nós, pelos outros, pelo ruído bom das vozes das crianças.

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