Objectivo: fazer um artigo sobre o que penso da eutanásia, embora já tenha sido votado no parlamento. É para minha surpresa que só por quatro votos é que não passou a eutanásia do homem.
O que pretendia dizer vou fazê-lo.
Vou opinar baseado na minha experiência como cidadão e profissional. Poucos terão essa experiência no nosso planeta Terra, dado que sou um jovem a caminho dos 89 anos e tive sempre uma vida extremamente ocupada e diversificada. Que este artigo seja como a introdução de um livro que é meu desejo fazê-lo, cujo título e conteúdo será “O Caminho da eutanásia no planeta Terra”. Eis a minha experiência como médico, como humano ou cidadão e observando os animais.
1. Entro no serviço hospitalar, na enfermaria de Medicina Operatória Homens. Entrou durante a noite um doente com tétano hiperagudo, isto é, com temperatura, convulsões umas atrás das outras. Encontra-se também o estagiário Victor Nogueira que me diz que tinha lido no Lancet um artigo em que num dos países nórdicos, creio que Suécia, tinham sido salvos dois tetânicos com a administração de mio-relaxantes e anestesia geral. Foi entubado, anestesiado, curarizado e, sobre uma maca, movimentando manualmente o balão de insuflação do ar de um aparelho boyle, manteve-se vivo 13 ou 15 dias. Morreu curarizado, mas de uma pneumonia.
Na reunião que havia no hospital aos sábados no Salão Nobre, foi apresentado este caso pelo Director de Serviço, o que levou a que, por interferência do Director Clínico do Hospital, se tenha comprado o primeiro aparelho eléctrico de insuflação. Esta é a origem do primeiro Serviço de Reanimação, não só em Portugal como na Península Ibérica.
2. Entra uma criança de 12 anos com ventre agudo por úlcera duodenal. Pais presentes interrogam-me: “Leva sangue?”. “É provável que sim”, respondi. “Então nós preferimos que morra”. Eram testemunhas de Jeová. Telefono ao meu Director de Serviço que me aconselha a telefonar ao Director do Hospital. Decido telefonar ao Procurador da República, que por sinal era uma pessoa extremamente humana e casado com uma prima minha distante. O seu conselho não me deu solução, mas sugeriu que telefonasse ao Ministro da Saúde. Não obtive solução deste e telefonei para o Ministro da Justiça. Felizmente que era o tempo da ditadura porque todos me atenderam, mas não era a solução.
Hoje, época da democracia, provavelmente nem o porteiro do ministério atendia a minha chamada (já que nem o Senhor Reitor nem o Senhor Presidente da Câmara têm tempo, no presente, para me receber).
Voltando à história da criança, digo então “Vou operá-lo porque prefiro estar na cadeia bem com a minha consciência do que estar cá fora mal com a consciência”. Salvou-se. Era filho único. Passados 15 dias vêm os pais. Como que a fazerem uma penitência, agradeceram-me.
3. Um meu colega e colaborador tinha uma cirrose por hepatite C com ascite, varizes esofágicas e já tinha sangrado. Esperança de vida segundo a ciência da altura, seis meses. O colega que o assistia disse-me, sendo eu então Director do Hospital, que havia um produto (Interferon) em experimentação que podia salvá-lo. Adquire-se. Foi o primeiro doente, pelo menos em Coimbra, com quem foi utilizado e veio a viver, se a memória não me atraiçoa, 10 a 16 anos, com a sua administração periódica.
4. Surge um doente com cerca de 28 anos, Professor da Escola Técnica da Figueira da Foz. Acompanhava-o uma prima casada com o comandante de um petroleiro natural de Moçâmedes. As suas queixas eram de tal ordem (dor abdominal) que ele me disse: “Dizem que eu sou morfinómano, mas a minha dor é de tal ordem que só com morfina se atenua”. “Tem um cancro do corpo do pâncreas que invade o plexo solar. Só operado é que lhe poderá passar…”.
Decidiu-se operar logo no dia seguinte na Casa de Saúde da Sofia. Quando abri, constatei que o diagnóstico estava certo e era extensivo ao estômago, duodeno e até intestino delgado uns bons 20 centímetros. Os primos aguardavam… Dirijo-me a eles e digo-lhes: “Pode morrer durante a intervenção… Querem que avance ou que feche?”. Peremptórios: “Preferimos que morra durante a intervenção do que continue com esse sofrimento”. Ocasionalmente passa pela sala de operações o colega Resende de Oliveira e até leva as mãos à cabeça, creio que horrorizado. Avancei.
Nos primeiros dois dias, esteve entre as nove e as dez horas (isto é, entre a vida e a morte). Salvou-se. Decorridos dois meses, vem, sem qualquer dor, saudável, bem nutrido e pergunta-me se poderia ir fazer termas. “Creio que sim. Creio que até é capaz de lhe fazer bem”. Foi e não sei o que se passou, mas, sem qualquer dor, veio a morrer pouco tempo depois.
Por outro lado, a Fundação Gulbenkian financiou a recuperação de três salas de operações e adquiri material para fazer cordotomia na medula, do cordão da dor, em que os doentes se movimentavam e tinham sensibilidade sem ter dor. A subserviência hospitalar que se instalou – directores nomeados – fez com que nunca tenham deixado abrir essa enfermaria e esteja em agonia o serviço que então criei.
Abordarei no próximo artigo a experiência humana e como cidadão e a observação dos animais.
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