Atrevo-me a dizer que a história da alimentação é uma história da seleção natural do gosto. No início era a fome e a disponibilidade de ingredientes e de produtos. Como escolher? Experimentando. Colhendo, provando. Ficamos a salivar só de olhar? Cheira bem? Sabe bem? Sabe mal? Faz doer a barriga? Mata ou faz viver? Será que não nos envenena? Dá-nos energia? E na linha do tempo lá foi o homem selecionando, escolhendo, eliminando opções, deificando outras. Percebeu que a escolha era uma questão de sobrevivência, uma imposição para além da vontade. E o gosto foi crescendo, foi criando padrões, estabelecendo limites.
O desenvolvimento da agricultura, o aparecimento da arte culinária e o suceder das grandes civilizações deram-nos os elementos para compreendermos a evolução da alimentação. Mas nessa linha temporal nunca o homem ficou satisfeito com o gosto alcançado. E, por isso, continuou a selecionar aquilo que lhe parecia melhor, mais saboroso, mais nutritivo, mais apelativo aos cinco sentidos. Por isso, alguns produtos tiveram tanto sucesso ao serem introduzidos em territórios distantes da sua origem e se transformaram em ingredientes imperdíveis em receitas ícone. Quem os utilizava percebia que sabiam bem, eram apelativos à visão e não eram rejeitados pelo corpo! Vista desta maneira, uma receita nunca foi nem nunca será somente uma maneira de entender a mistura de ingredientes, mas será a opção mais saudável, mais nutritiva, mais saborosa e mais apelativa. A questão foi sempre a opção, a escolha, por vezes, o equilíbrio difícil entre o que melhor sabe e o que melhor faz. Porque haveria a doçaria conventual contemplar a clara quando a gema do ovo representava uma opção com resultados tão mais bonitos e exuberantes, tão mais saborosos e mais nutritivos? Não é à toa que as receitas são como são, para além das explicações, por vezes, forçadas da origem das coisas.
É claro que no meio de tudo isto, muitos foram os sabores que se foram perdendo. Fazer arqueologia dos sabores pode ser, por exemplo, pensar a doçaria sem o açúcar, a caldeirada sem o tomate, o bacalhau sem as 1001 receitas que dizem existir. Mas, a questão é: será que queremos sequer colocar essa hipótese? Até pode ser um bom exercício, mas não será mais do que isso, um exercício, pois a opção que vingou há muito que está testada pela necessidade de sobrevivência, de bom sabor, de boa digestão, de boa nutrição. Uma receita não é, ao contrário do que se possa pensar, um acaso, uma epifania que nos traz a revelação. É muita, muita experiência, na qual fazemos a seleção do que gostamos mais e do que queremos evitar. Por isso mesmo, há receitas que se mantém, são intemporais, outras há que são circunstanciais, existem no exato momento em que são usadas sem marcar a história do gosto. A seleção natural anula-as, portanto. E os sabores que se perderam? Perderam-se. Não vingaram. Fazem parte, apenas da arqueologia dos sabores, pois a vida é marcada pelos sabores vivos que enlouquecem os nossos sentidos e fazem bem.