Opinião – Praxes, democracia e Direitos Humanos

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As tradições constituem referências identitárias importantes. Porém, é um erro considerá-las a essência imutável das comunidades, cuja alteração corresponderia a uma perda das identidades em causa. Na realidade, as culturas são sempre dinâmicas, evoluindo segundo dinâmicas diversas.

Assim tem acontecido com a praxe académica coimbrã, cujas práticas se têm transformado ao longo do tempo, acompanhando as mudanças na academia e na sociedade. De resto, é esta transformação que, perante praxes cada vez mais frequentes, que envolvem violência física, sexual, psicológica e simbólica, destruição de património público e privado, ou comportamentos que ferem a dignidade dos/as participantes e dos/as conimbricenses, permite aos “puristas” da praxe académica persistirem na sua defesa, com o argumento de que as referidas práticas não teriam acontecido na “antiga e verdadeira praxe”.

Porém, se é verdade que a praxe evolui com a sociedade – nomeadamente na sua massificação (o uso das redes sociais para convocar “mega-praxes” em que multidões de estudantes embriagados/as invadem a cidade, com comportamentos e linguagem degradantes, deixando um rastro de lixo e estragos), na sua sexualização machista e agressiva, e, sobretudo, na sujeição às lógicas de um mercado que cresce exponencialmente –, mantém-se a matriz hierárquica, autoritária, humilhante, promotora da obediência cega a códigos e normas sem sentido. Ou seja, é impossível separar a “verdadeira praxe” da praxe tal qual se faz, hoje, em Coimbra. E, por conseguinte, é enfrentando este facto, e não com mitologias do passado, que é preciso intervir no sentido de contrariar um fenómeno anticívico que tem, progressivamente, alienado mais estudantes e a cidade de Coimbra.

Os/as próprios/as estudantes deram, recentemente, um passo importante neste sentido. Num referendo, mais de 5000 estudantes recusaram a realização da tradicional garraiada na Queima das Fitas. Trata-se de uma votação assinalável e que deve ser aplaudida como uma vontade de modernizar a tradição, no sentido de dela erradicar as práticas que violam os direitos dos animais. Ora, esta votação foi rapidamente contrariada pela autoridade máxima da praxe – o Conselho de Veteranos –, numa manifestação autocrática que não surpreende, no contexto de uma praxe que é, organicamente, antagónica à democracia. Se bem que esta decisão, rejeitada pela Presidência da AAC e pelo Dux Veteranorum, tenha sido anulada, aguarda-se decisão definitiva dos veteranos.

Este processo está a ter a virtude de mostrar à comunidade estudantil e à cidade que a praxe é avessa à conceção moderna de direitos e que tem de ser radicalmente alterada. Mostra também que podem e devem ser os/as estudantes a fazê-lo.

Oxalá perseverem no exercício da democracia e alarguem a contemplação de direitos à dignidade humana dos/as colegas a quem, nos rituais praxísticos, não só apelidam de “animais” como, com demasiada frequência, tratam pior que os ditos.

 

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