As imagens de acontecimentos trágicos entram no nosso quotidiano com uma cadência tão alta que os nossos cérebros se fecham a crimes contra a humanidade como o homicídio, o extermínio, a escravidão, o genocídio ou o massacre. Acreditava que davam nomes às maiores barbáries para nos envergonharmos do passado e evitarmos a crueldade futura, mas descobri, com o tempo, que são somente nomes distribuídos numa escala, onde se quantifica o número de mortes: ‘Holocausto Judeu’, ‘Genocídio Ucraniano’, ´Sangue no Camboja’, ‘Terror vermelho’, ‘Massacre em Ruanda’, ‘Holodomor’, ‘Gulag’, ‘Estupro de Berlim’… tanto desamor, tantos mortos!
Em breve existirá um nome para a guerra que começou em 2011. Primeiro um grupo de jovens foi torturado por ter escrito mensagens revolucionárias num muro, depois as manifestações inspiradas na ‘Primavera Árabe’ e, num instante, este filme de terror. Passados 7 anos, a Síria está assente em escombros, o leite está 20 mil vezes mais caro, 5 milhões de pessoas refugiadas e os que ficaram já sepultaram 450.000 mortos.
Há poucos dias, numa conferência na escola do meu filho, quatro ilustres convidados apresentaram os seus trajetos académicos e profissionais. No meio das estórias, a do quotidiano de um jornalista, que tanto pode estar a cobrir o Carnaval no Rio como destacado num campo de refugiados, onde lhe desfalecem nos braços “jovens como vocês, mas com 15 kg de peso”. Não é fácil passar este testemunho a uma plateia de duas centenas de jovens no início do secundário, por isso retive a imagem dos olhos embaciados do José Manuel Portugal. Quando à noite revi as notícias do dia, as bombas no enclave de Ghouta soavam-me de forma diferente.
Ghouta é uma zona agrícola em torno da cidade de Damasco. A parte oriental, sob controlo do Exército Livre da Síria (rebeldes moderados apoiados pela Turquia, Arábia Saudita, Quatar e pela Frente al-Nusra, subsidiária da al-Qaeda), está encurralada por Bashar al-Assad e pelos que o suportam (Russos e Iranianos através dos xiitias libaneses do Hezbollah). O conflito está generalizado. A norte com os Curdos apoiados pelos Ocidentais. No que resta do país, contra todos, numa espécie de guerra dentro da guerra, estão os radicais islâmicos do Daesh, que os americanos ajudaram a criar em ‘Camp Bucca’ e em ‘Abu Gharaib’, financiados por todos nós cada vez que vamos às bombas (de gasolina).
Os corredores humanitários de acesso a Ghouta são bombardeados pelos dois lados. De lado de fora, Bashar al-Assad está empenhado em dar um exemplo aos Curdos e, do lado de dentro, os que não são rebeldes servem de escudo e testemunham o cenário dantesco, como o faz Muhammad Najem, repórter de guerra aos 15 anos. É irrelevante que este jovem esteja a ser utilizado! Há alturas da vida em que servir é sinónimo de respirar. O que ele nos dá a conhecer pelo twitter é suficiente para perguntar qual o maior assassino? O que bombardeia hospitais repletos de indefesos, ou o que se esconde com a kalashnikov atrás das crianças ou o que assiste, impávido, à discussão do jogo de tabuleiro pela supremacia do Médio Oriente. O genocídio é publicitado por uma geração que já perdeu 6.000 escolas. São 2 milhões de crianças sem um porto de abrigo e sem aprendizagem. Um conflito brutal em que a violência é uma prática comum e a escola é substituída pelo treino militar, que lhes proíbe a infância e rouba o futuro. Enfim, “Não há império que valha que por ele se parta uma boneca de criança. Não há ideal que mereça o sacrifício de um comboio de lata.” (no Livro do Desassossego).
Certamente que surgirá um nome “próprio” para mais um ato ignóbil. Mais uma medalha de lapela neste vespeiro, ao lado da ‘Guerra dos Seis Dias’ ou do ‘Yom Kippur’. E sem percebermos que, para salvar a humanidade, podemos começar por salvar uma vida… em Goutha.