Há poucos meses passou pelo Auditório do Convento de São Francisco a cantora catalã Sílvia Perez Cruz. Espectáculo belíssimo. Em uma das canções – “No Hay Tanto Pan” – sobre os desalojados das nossas cidades, dizia-se que “es indecente – gente sin casa, casas sin gente”. Mesmo que específica intenção não tenha havido, a jovem cantora deixou no palco de Coimbra a denúncia da desafinação que grassa no panorama habitacional de Portugal.
Com menos capacidades versejantes, mas igualmente acertado, está o texto do artigo 65º da Constituição da República quando proclama que “todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”. Claro que haverá quem venha dizer que a Constituição está desactualizada. Há quem ache, nestes nossos dias confundidos, que modernidade significa transacção, mesmo que se trate de converter os básicos direitos humanos em assunto de mercadores.
A necessidade de um tecto que nos proteja da chuva tem muita força. Tanta que, à falta de um justo mercado de arrendamento, os como-eu estão obrigados a empenhar a vida toda no pesado pagamento, a um qualquer banco, da casa em que habitam. Bem avisava Brecht, na sua Ópera dos Três Vinténs, que em matéria de desfalque “roubar um banco é pouco roubo, se comparado com a criação de um banco”, regra bem do conhecimento daqueles que têm a economia familiar refém de um negócio que o não deveria ser, alimentando com as suas prestações lucros fabulosos que nunca serão investidos no bem-estar geral. No Portugal destes dias, tanto ou mais do que em qualquer país da Europa, o direito constitucional à “higiene e ao conforto” é um produto de mercado, sujeito às respectivas regras e consequentes desumanidades.
Com as casas convertidas em depósito a prazo de elevada rentabilidade, Coimbra transformou-se num sítio caro para se morar. Um artigo recentemente publicado na imprensa dá conta do lugar que a nossa Cidade ocupa no ranking das carestias habitacionais: 4º lugar nacional, logo após Lisboa, Porto e Faro. O desonroso posto resulta de políticas urbanas de inspiração externa (cujo incremento especial se situa na altura das imposições do FMI ao governo do Bloco Central, na década de 1980 ) desenhadas para a desresponsabilização do Governo central, a entrega às autarquias de responsabilidades que vão pouco além da gestão da chamada “habitação social”, a venda de património público (alimentando a espiral especulativa), o acesso dos “pato-bravos” ao estirador, a entrega do protagonismo habitacional à Banca. Tudo bem urdido.
No momento em que se desenham, entre Lisboa e Bruxelas, novas políticas para a Habitação, há muito a fazer para inverter o caminho de aprofundamento do fosso entre os munícipes e a casas de que precisam. O início da solução para o problema está em ampliar o parque habitacional do Estado (também através das autarquias), recuperando para quem de direito o papel de protagonismo nas políticas públicas de Habitação.
Olhemos para a Baixa e para a Alta desta Coimbra, para a Beira-rio, para as ruínas daquela que foi a zona industrial desta Cidade. Em matéria de urbanismo, habitação e actividade económica, Coimbra não merece ser a capital das indecências. E já que de cantigas se falou, experimentem pôr a tocar a “Liberdade” do Sérgio Godinho (do álbum “À Queima Roupa”) – está lá tudo.
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