Em sábado de Aleluia, a Queima do Judas abria o apetite para os folares acabadinhos de sair do forno. Após o espetáculo de fogo em noite escura da queima daquele que traiu Jesus, tradição tão cristã como pagã, todos corriam para a cozinha para provar os folares. Amassados no dia anterior e após uma longa levedura, eram tendidos em forma circular ou em meia-lua e cozidos em forno, primeiro quente, e depois brando para que a parte do miolo ficasse húmida e mais consistente.
Não é que não se pudesse comer folares fora da Páscoa, mas no sábado de Aleluia tinha outro sabor. De imediato, era sabor que nos acalmava as privações da Quaresma e, num segundo, nos lembrava todo o caminho iniciado com a Quarta-feira de Cinzas até à luz terna e calma dos candeeiros e das velas da procissão dos Passos do Senhor, o cheiro do ramo de oliveira e alecrim do Domingo de Ramos e a alegria do Domingo de Páscoa. Renasce a natureza e também a esperança na abundância. Os folares disso são prova ou não fossem feitos com farinha de trigo, cereal maior e mais considerado ao longo da linha do tempo da história da alimentação.
Sim, de trigo. Porque assim seria mais fofo, mais leve, mais alvo. Porque na mistura com os ovos, com o açúcar, com a banha, com o azeite, com o leite ou com a manteiga, resultaria numa receita, simples, mas extraordinária. Feitos com o centeio, cereal mais pesado e mais grosseiro, nunca o resultado seria tão bom. Sim, de trigo. Porque o alimento enquanto oferta de agradecimento é uma procura constante do melhor que podemos dar. Por isso, ainda que muitas regiões de Portugal não beneficiassem de uma geografia disponível para a produção do trigo, na Páscoa, nunca ali faltaram os folares feitos com a melhor farinha.
Na dádiva feita agradecimento, nunca o possível fechou a porta ao impossível. Por isso, temos o Folar da Guarda, região que pelo relevo e pelas temperaturas nunca foi terra para produção abundante de trigo, mas que é feito com a melhor farinha deste cereal nobre. O azeite, a aguardente e os ovos fazem um pão, que não é doce pois não leva açúcar, mas que a todos sabe bem porque faz lembrar esta época de celebração da semente que renasce após os duros meses de Inverno.
Se na Beira Alta domina o Folar feito com azeite e sem açúcar, já na Beira Litoral o trigo moído em mós alveiras dá origem à farinha certa para se fazerem os folares que em cada terra são oferta dos padrinhos aos afilhados. Pelas terras mais planas e mais quentes das nossas Beiras acontece o esplendor dos pães doces da Páscoa. Bolo das Alhadas, Folar de Ílhavo, Bolo de Cornos, Folar dos Padrinhos, Folar das 24 horas, Folar com Ovos, Bolo de Ançã, simplesmente Folar.
Cada terra encontrou a receita original para o seu pão doce de oferta na Páscoa. Cada comunidade soube servir o propósito de encontrar a melhor combinação entre a farinha de trigo, os ovos, a manteiga e o leite. Incrível como, ora a quantidade de cada um dos ingredientes, ora a escala e a ordem dos mesmos, resultou em sabores tão distintos.
À mesa, na Páscoa, fazemos uma viagem por Portugal que, à semelhança da paisagem, é pródiga de singularidades e pequenas diferenças. O Folar disso é exemplo. Se do Folar transmontano, onde o porco é o conteúdo máximo de uma versão salgada a lembrar a importância da raça autóctone bísara, ao Folar algarvio, onde a aguardente de medronho faz a simbiose perfeita com a massa adocicada pela canela e açúcar amarelo, descobrimos a criatividade das nossas matriarcas cujo enxoval nunca descurava a boa tradição dos folares, do Vouga ao Mondego somos surpreendidos pelas mil versões de uma mesma matriz.
E é verdade que, hoje, o folar abunda no mercado mesmo fora desta quadra festiva. Mas nunca o folar sabe tão bem como em sábado de Aleluia. O Judas já não se queima, mas o folar deixa-nos a certeza de que o alimento pão feito doce ainda nos mata a saudade.